A FARSA >> Fernanda Pinho
- É, Fernanda, ele não existe.
Foi assim, à queima roupa, que duas primas minhas me
contaram a verdade. Sem medir as palavras e as consequências, me revelaram,
numa noite chuvosa, típica das que precedem o natal, que o Papai Noel era uma
farsa.
Não chorei, não questionei. Apenas quis ficar sozinha, como
faço ainda hoje quando me sinto angustiada. Não é exagero dizer que fiquei
angustiada. Fiquei, e muito. Eu que, até aquele momento, só havia sentido algo
semelhante apenas uma vez na vida – na ocasião em que descobri que a Vovó Mafalda era
homem – via mais um mito desmoronar. E se você já foi criança, sabe do que eu estou falando.
É verdade que, desde que um suposto Papai Noel havia
visitado o jardim de infância onde eu estudava, no ano anterior, nosso
relacionamento não estava lá essas mil maravilhas. Eu aguardei ansiosamente
pelo momento daquele encontro e soube esperar, resignada com a condição de
última da fila – oh sina de ser a maior da turma desde criança. Eu só não
imaginava que, quando finalmente, chegasse minha vez, Papai Noel estivesse todo
amarrotado, suado, nervoso, dando beliscão – provavelmente aflito para ir ao
banheiro, fumar, ou qualquer outra necessidade humana. Nem que eu receberia uma
lembrancinha toda campenga, faltando o lacinho, e sem a possibilidade de troca,
afinal era a última do saco. E eu que achava que ver Papai Noel de saco cheio
era coisa boa, voltei para a casa chateada. Mas meus pais – sempre eles – me
fizeram compreender que a culpa não era dele. E sim, das tradicionais filas
brasileiras que não poupam problemas nem para velhinhos vindos de outras
dimensões.
O encanto, porém, continuava. Bem ou mal, aquele senhor
havia me presenteado com a boneca da Xuxa! Só eu tinha a boneca da Xuxa em todo
o jardim! Nem a Mariana tinha! Ah, ele devia gostar mesmo de mim. E o
fogãozinho que acendia de verdade? Todas as minhas vizinhas queriam um
daqueles. E eu tinha dois! Ganhei no mesmo dia, um da minha madrinha, outro do
Papai Noel. Isso eu não entendi. Se o bom velhinho tudo pode, por que ele não
adivinhou que a madrinha me daria esse brinquedo e trocou de presente? Mas tudo
bem, de certo estava muito ocupado preparando suas renas para a longa jornada
natalina. Também não entendi como ele conseguiu entrar pela janela do meu
quarto com a minha bicicleta rosa. A janela tinha grade! Mas conseguiu, ela estava
lá, atrás da porta, em cima do meu sapatinho. Vai ver ele também era um usuário
de pílulas de nanicolina, tal como o Chapolin.
Fiquei um bom tempo assim, afundada em minhas lembranças que
se misturavam com a frase cortante das primas iconoclastas - "Ele não
existe" - e com as revelações que vieram logo em seguida: "É o seu
pai quem compra seus presentes", "Quem guarda a cartinha que você
deixa na janela é a Tia Léia. Não tem duende nenhum que vem buscar".
Meus devaneios foram interrompidos com a repentina entrada
de meus pais em meu quarto. Me vendo cabisbaixa, no canto da cama, quiseram
saber o que tinha acontecido. "Aconteceu que eu descobri que eu estou
sendo enganada há CINCO anos. Tem CINCO anos que eu mando cartinhas para aquele
velho babão e agora eu soube que ele não existe!", mas isso eu não disse,
eu só pensei. Pensei também que, talvez, a descoberta da verdade implicasse
automaticamente no fim das regalias natalinas, e não querendo arriscar o salão
de beleza da Barbie que eu havia pedido para aquele ano, respondi
displicentemente. "Nada, não. Estou só pensando se o Papai Noel já recebeu
minha cartinha".
Comentários
fico pensando em quantas vezes não usamos essa displicência ao londo da vida para evitar o fim de regalias.
Brilhante e oportuno seu texto.
Adorei, Bjus
Loreyne
Respeito sinceramente sua opinião, mas mesmo aos 43 anos, tratei de escrever a minha carta e fui no correio postá-la. Se quiser conferir é só acessar:
http://mundofis.blogspot.com/2010/12/eu-tive-coragem.html
Um grande abraço,
André Luiz