NA JANELA... NO BALANÇO... >> Carla Dias >>

Estou envelhecendo.

Estamos, não? E compreendo, cada vez com mais clareza, quando alguém diz “a sabedoria do tempo”. Não é o tempo que se torna sábio, mas é o próprio que nos concede a oportunidade de nos tornarmos sábios, aprendendo a acompanhar a vida a passos mais largos, sem dar urgências como desculpa, apreciando paisagens e não apenas o buquê do vinho ou o do café. Porque às vezes é preciso nos debruçarmos na janela do tempo e percebê-lo passando ao som do silêncio, prestando atenção no que, no afã da correria cotidiana, permitimos passar despercebido.

Há quem creia que estamos morrendo a cada dia, mas prefiro pensar que estamos nos construindo a cada dia, colocando mais um tijolo, instalando abajures, pintando paredes, criando jardins secretos, alimentando sonhos. E aprendendo a realidade do respeito, que não é apenas dedicado aos que conhecemos, mas também aos que julgamos estranhos, mas que, na verdade, são parte de quem somos.

Escutei de uma criança uma teoria sombria sobre como o mundo está sendo assassinado. Enquanto ela falava, arregalava os olhos e me vendia – usando e abusando da sua condição de menina que não deveria se preocupar com essas coisas – a ideia de que temos de cuidar do planeta, senão a água acabará, e o que a gente vai fazer? “A gente vai morrer de sede! A gente vai morrer!”

A gente vai morrer. Eu sei.

Desculpem-me os que acreditam que devemos alimentar os abismos na infância. Mas em casos assim só posso pensar no que minha avó dizia, e que sei que não é de sua autoria, mas apenas um fato: cada coisa a seu tempo. Porque até mesmo para compreender a morte ou a sorte, e que o planeta depende da forma como o ser humano lida com ele, de acordo com a própria ganância, há o tempo que é acertado, até mesmo quando não parece o certo. Não que devamos esconder as coisas das crianças, até porque hoje tudo se vê. Porém, podemos evitar que elas se consumam com os problemas que não lhes cabem, ao menos no momento.

Às crianças cabem os abrandamentos.

Aquele desespero da menina vem de dois tipos de fonte: o telejornal e a igreja. Viesse da educação capaz de receber pensadores, ela poderia se sentar perto de mim e me contar sobre os perigos de não sabermos cuidar desse lugar que nos recebe e o qual chamamos de lar. Contaria sobre como aprendeu a economizar água, reciclar o lixo, e da importância de Deus na criação do planeta, e de nós na conservação e transformação dele. Não houvesse o sensacionalismo ao se contar tragédias ou a religião impregnada do direito de domesticar pensamentos, essa menina, inteligente que só, curiosa o suficiente para aprender, poderia, logo mais, contar-me que nós vamos morrer, mas não de falta de água, tampouco de comida, mas sim porque a morte é natural à vida, e das outras coisas, nós, os seres humanos, temos de cuidar com atenção e desprendimento.

Essa crônica não é para maldizer a televisão ou criticar a igreja, tampouco para driblar a morte com teorias sobre a imortalidade. Mas como eu disse, estou envelhecendo, e prefiro pensar a vida ao perscrutar a morte. E aceitar a realidade com direito às melhoras que pessoas sábias possam provocar.

Essa crônica é sobre estar debruçada na janela do tempo, escutando o silêncio que antecede a chegada daqueles que, ainda no início das suas jornadas, podem aprender a vida de um jeito diferente, muito mais amável e cuidadoso. E para isso, a sabedoria tem de chegar no tempo que lhe cabe, na época em que será absorvida com graça e apreço.

“A gente vai morrer!”, ela quase gritou, olhinhos assombrados pelo o que assistiu no telejornal e o que aprendeu na igreja, misturando os problemas causados pelo ser humano com tudo o que lhe disseram sobre pecados e apocalipse. E eu não pude responder no mesmo grau de urgência, porque estou envelhecendo, já sei que nem tudo é a ferro e fogo ou preto no branco. Só sei que cada coisa a seu tempo.

Hoje não! Hoje vamos brincar no balanço.

E a menina esqueceu da sede e da fome e da morte, porque balançava tão alto, às vezes se enrolando no balanço para rodar bem rápido. Divertia-se neste tempo que era o da alegria de ser uma pessoa que sabe apreciar uma boa brincadeira. E da janela do tempo, décadas de vida a mais do que ela, debruçada, e com a preguiça da tarde quente como companhia, eu aprendia mais sobre importâncias, enquanto a observava ser feliz.


carladias.com

Comentários

Gostei da "janela do tempo" e de mais umas boas coisinhas. Muito bom.
albir disse…
Verdade, Carla. Transformadas em mercadoria, a notícia vende melhor quando é sensacionalismo e não informação, e a fé vende e controla melhor quando é medo e não responsabilidade e amor. Beijos também em 2012.
Mariana Velozo disse…
"Às crianças cabem os abrandamentos.", Bonita crônica!Gostei muito de ler esse texto hoje, Obrigada!
Sonia Guedes Reis disse…
Gostei muito desta crônica...Vamos morrer, é fato. Concordo com você, quando diz que cada coisa tem o seu tempo. Sábias palavras. Ótimo texto. Enriqueceu minha forma de expor idéias...Parabéns Carla! Esta é mais uma das maravilhosamente escritas por você...Feliz Ano Novo!
Carla, estive atrasada nas minhas leituras aqui.
Só pude te ler hoje, mas seu texto é o que há de mais propício para este primeiro dia de um novo ano.
Que a gente continue se reconstruindo e muito!
rita varanis disse…
parabéns Carla Dias...linda crônica...é incrível descobrir pensamentos que se igualam aos nossos...porém esses "pensamentos" organizados de forma certa com as palavras parece que colocadas uma por uma, com cuidado e carinho de uma boa escritora torna a rotina descrita mais poética...mais fácil de aceitar...parabéns pelo dom...
Zoraya disse…
E tomara que nós, que temos décadas de vida a mais que a criança, tenhamos sempre a capacidade de debruçarmos na janela e aprendermos "sobre importâncias" e, quem sabe, brincar um pouquinho no balanço. Mais uma crônica-poesia da Carla para abrandar o dia...

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