AS COISAS ANDAM MEIO ESQUISITAS >> Zoraya Cesar

Barulho, poluição, trânsito caótico - você leva duas horas dentro de um ônibus, trem, metrô, seja o que for, para percorrer um trajeto que levaria meia hora, se tanto. Chefes chatos (sim, eu sei, além da aliteração pobre, é uma redundância), salários defasados. É a encomenda que não chega no prazo, é a fila nos hospitais...  Chega. A lista das coisas que nos enervam dia após dia, fazendo com que sejamos barris de pólvora com pavio curto é infindável. E já está na hora de contarmos a nossa história, pois eu quero ver alguém me explicar o que anda acontecendo conosco.

Nosso amigo, Fernando – não o chame de Nando, que ele detesta; tampouco o chame, ele está incomunicável no momento -, é um homem responsável e sempre dirigiu muito bem. E daí? Daí que, por melhores que sejamos, acidentes acontecem. Naquele dia, por exemplo, estava ele manobrando de ré (olhando pela janela e não pelo retrovisor, verdade seja dita), numa rua esburacada e sem sinalização, quando...

THUD! Ele bateu em alguma coisa.

Numa velhinha, que, deitada ao lado do para-choque, gemia baixinho, ai, ai, ai. Fernando foi socorrê-la, mas não teve tempo. Surgidas sabe Deus de onde, pois a rua estivera deserta até então, algumas pessoas chegaram já gritando “cretino, filho disso, filho daquilo, bandido, pilantra”, entre outros adjetivos mais pesados (mais pesados que “filho disso e daquilo”? Sim, tem).

A velhinha caída lá, ai, ai, ai.

Um sujeito perguntou se ele não tinha mãe não? Seu sem-vergonha, disse uma outra, vai atropelar alguém do seu tamanho. Ao que o fortão com pinta de açougueiro do tatame foi logo bufando, é, me atropela que eu quero ver. Um rapaz todo engomadinho afirmou que Fernando ia fugir sem prestar socorro, isso era crime. A moça de saia curtíssima falava com voz grossa, é, esses ricos são assim mesmo, saem atropelando todo mundo, só porque têm dinheiro.

E a velhinha não parava de gemer mansinho ai, ai, ai.

Ele sentiu que a coisa estava realmente feia quando alguém falou “assassino” (eu disse que tinha adjetivo mais pesado. Hein? Você não acha que “assassino” seja pior que “filho disso e daquilo”? Sério?).  A turba se aproximou mais, ameaçadora. Ele quer acabar de matar a velha, falaram; para não deixar testemunha, completaram. E a velhinha, apavorada, vai sobrar pra mim, pensou, e gemia ainda mais baixinho, ai, ai, ai.

Mas absolutamente ninguém prestou atenção nela. Mesmo Fernando, que tentara sinceramente levá-la a um hospital, estava agora mais preocupado em não ir para um, de maca. E pela movimentação do pessoal, teria sorte se não fosse direto para o necrotério. Vão me matar, pensou, quando alguém berrou “vamu pegá”. 

Ele começou a correr. Muito. A sorte é que a turma estava mais ansiosa por linchar o desinfeliz que atropelou uma velhinha, que em correr atrás de vagabundo (palavras deles, não minhas, já disse que Fernando era boa pessoa). Com o sujeito ali, bastava bater até matar e pronto. Desopilavam o fígado, extravasavam as frustrações, tudo muito prático. Agora, sair correndo? E ficar todo suado, perder o ônibus, desencontrar do namorado, atrasar o almoço das crianças? Nem pensar. Alguns ainda esmurraram e riscaram o carro, outros procuraram ver se tinha algo de valor. Mas a galera foi se dissolvendo, até que ficou tudo deserto de novo.

Deserto? Não. A velhinha continuava lá, deitada, gemendo, ai, ai, ai, sem que vivalma tivesse a caridade de procurar saber se ela precisava de alguma coisa. Se alguém pensou em ajudar, pensou melhor e desistiu. Sabe como é, de repente a velha é pobre, eu é que não tenho dinheiro sobrando para pegar táxi, e já estou atrasado, o patrão vai encrencar, o hospital é longe, atendimento demora, a policia vai me fazer perguntas, eu não vi nada, não quero conversa com polícia, depois a velha morre e vão botar a culpa em mim, a ambulância deve estar chegando..., bem, essas coisas, vocês entendem.

E ficou por lá a velhinha, cada vez gemendo mais, ai, ai, ai? Sim. Ficou. Não vou mentir para vocês não, a velhinha ficou lá. E eu não sei o que é mais triste, o fato de que aquelas pessoas estavam mais preocupadas em “fazer justiça” (se é que esse conceito existia em alguma cabeça oca por ali), espancando um ser humano, que em prestar socorro a outro. Ninguém tomou qualquer providência, nem se interessou em saber o que acontecera realmente, ou, sequer, olhou direito para a vítima.  Mas estavam prontos para fazer sabem Deus ou o diabo o quê.

Depois que se viu a salvo daquela gente doida, Fernando conseguiu levar a velhinha para o hospital. E ficou por lá mesmo, em estado de choque (efeito retardado, disseram os médicos), repetindo “eles iam me matar, ai, ai, ai, eles iam me matar” a cada cinco minutos.

A família da velhinha está prestando toda a assistência.

(O final é até relativamente feliz, a velhinha já recebeu alta e Fernando está quase curado. Mas antes de terminar eu deixo três questões para você pensar: o que está acontecendo conosco? Estaremos perdendo o sentido do que é humano por conta do estresse? Pare e pense nessa também: são aquelas pessoas muito diferentes de você? De nós?)

Comentários

albir disse…
Não, Zoraya, não somos diferentes. A turba assassina, a velhinha moribunda e o Fernando traumatizado somos nós. Admitamos ou não.
Anônimus Animadus disse…
Acrescento mais uma pergunta (sem conteúdo moral embutido, muito pelo contrário!) ao final feliz - apenas para quem a relatou e para os que a leram depois... já para o protagonista... - da tragicômica historinha do Nando (relaxa, moço, que é só um apelido carinhoso, bem melhor que ser chamado de protagonista!). Que tipo de velhinha é essa que, mesmo sendo de boa família (daquelas que prestam toda a assistência), faz ponto numa obscura rua esburacada e sem sinalização, não vê o carro de um homem responsável e bom motorista dando ré e ainda faz "THUD!" ao ser abalroada (porque, atropelada, de fato, nem foi!)? Se alguém conseguir me responder essa, juro!, contrato o Nandão como meu motorista particular e, claro, a cronista também, que ainda há muitas revelações a serem feitas nessa divertidíssima trama da vida real. Ai, ai, ai.
r a c h e l disse…
Eu andava assim, estressada, com chefe chato. Agora tô de vida nova. E adorei sua colocação. Temos mesmo, todos nós, que pôr a mão na consciência e as atitudes no lugar. Se deixarmos por conta da maioria, estamos é lascados.

Beijo queridona,
Rachel
Alexandre Durão disse…
Querida Zoraya.

Seu texto flui. E quem se arrisca na escrita, sabe o quanto isso é difícil e raro.
Outra coisa, daqui pra frente, quando ouvir um THUD! já sei o que pensar: meu Deus, atropelaram uma velhinha.
Beijos e espero a próxima.
aretuza disse…
Caramba.....
Acho que tinha um monte de gente que eu conheço no meio da turba assassina....
Vou encaminhar para esse povo a sua crônica, quem sabe eles se reconhecem.... e mudam!
Anônimo disse…
Zoraya, adorei! Muito bom gosto e sensibilidade!

Acredito que realmente em muitos momentos perdemos um pouco do bom senso devido à correria do dia a dia... Mas, gosto de acreditar que não é uma verdade absoluta e tento sempre me colocar na situação alheia e imaginar como me sentiria... claro que isso é uma prática difícil mas temos que exercitá-la ao máximo!

Bjs, Cris

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