O PIANO >> Fernanda Pinho
E então eu estava novamente no meu quarto com piso de taco, parede rosa e cortina branca com casinhas vermelhas. A cama de cerejeira já estava danificada pelas figurinhas do álbum da Xuxa que eu decidi colecionar na cama, e não no álbum. A cama estava no meio do quarto, como esteve até minha irmã nascer. E, ao seu lado esquerdo, meu brinquedo preferido. Amei muito minhas panelinhas, minha bicicleta, minhas Barbies. Mas nada que se comparava ao que sentia por ele, meu pianinho de cauda. Era lindo, uma miniatura perfeita de um verdadeiro piano de cauda branco. Ao revê-lo, corri para perto dele com a euforia de quem vê um amigo sumido. Sentei em seu banquinho e, embora já com 1.80m de altura, fiquei perfeitamente acomodada. Pena que ao tocar numa das teclas acordei. Mas acordei feliz com o reencontro, embora tenha durado tão pouco. Sonhei com meu piano pela primeira vez, em mais de duas décadas. Provavelmente, alguma parte adormecida do meu inconsciente despertou depois que encontrei na academia uma amiga da minha mãe que frequentava muito a nossa casa, naquela época. Ela foi uma das tantas pessoas que presenciaram minha relação de afeto com o pianinho. Passava horas diante dele, batendo em suas teclas sem a menor harmonia. Minha mãe, sempre fascinada com piano, nem se irritava com o barulho. Achava lindo que, desde tão cedo, eu já tivesse descoberto uma vocação.
Quando fiquei um pouco grande demais para um piano em miniatura, minha mãe me matriculou numa escola de música, para aprender a tocar num instrumento de verdade. O professor era o Pedro, um músico virtuoso que ensinava todos os instrumentos para as crianças do bairro. Minha primeira tentativa de ser uma pianista de verdade durou exatos três meses e tudo o que aprendi foi a primeira parte de Pour Elise. Digo "aprendi" por falta de termo melhor. Aprender eu não aprendi coisíssima nenhuma. Nem mesmo a excelente didática e a paciência de monge do professor conseguiram enfiar na minha cabeça os significados de cada símbolo da partitura. Na minha cabeça só existia: tecla preta, tecla branca, mindinho, anelar, dedo médio, indicar e polegar. Tudo o que eu fazia era decorar a sequência. Mindinho branca, anelar preta, polegar e indicador brancas e assim por diante. Ficava tão concentrada no meu método que mal conseguia ouvir a melodia que eu produzia. Por fim, cansei e pedi pra sair.
Minha mãe, claro, achou que fosse só uma crise. Afinal, eu era um talento. Nasci amando piano, não poderia desperdiçar minha vocação. Algum tempo depois, lá estava eu de volta à sala do Pedro. A segunda tentativa durou menos ainda: um mês. Decorei mais umas sequências de dedos e teclas e já podia tocar Carruagens de Fogo. Mas o que me interessava mesmo na escola de música era ver os alunos das aulas de bateria. Eu chegava a invejá-los. Mais por vontade de não tocar piano do que por vontade de tocar bateria. Consegui escapar mais uma vez. Só que a vida não é assim tão simples e houve uma terceira tentativa. Dessa vez durou um único dia e então eu me rebelei. Era preciso verbalizar, já que ninguém parecia compreender: eu não gostava de tocar piano, eu não me interessava por piano, eu não tinha paciência para piano e, mais que tudo isso, eu não tinha talento para o piano. Mas onde foi parar aquele amor todo pelo pianinho de cauda? Foi aí que eu entendi a origem de todo o mal-entendido e tratei logo de esclarecer: eu amava meu piano de cauda porque imaginava que ele era uma máquina de escrever.
Foto: http://www.sxc.hu/
Comentários
(...)
Mtoo boa a crônica. Não é a toa que vc achava que o pianinho era uma máquina de escrever. Escrever sempre foi sua verdadeira vocação!
Bjos
Não basta querer trocar de "instrumento", tem que ter vocação. Nunca te ouvi tocar piano, mas para escrever, posso garantir que você toda vocação necessária.
Amiga, o mais lindo é que vc sempre soube...vc é escritora desde sempre!
BEijooooooooos