TODO O PESO DO MUNDO >> Leonardo Marona

Foi muito bom ter descoberto a história do primeiro casamento de Ernest Hemingway. Foi encorajador. Ele tinha apenas vinte e um anos e se casou com Hadley, que tinha vinte e nove, e era virgem. Aquilo jogava por terra a minha ideia de que um bom escritor precisa se envolver, necessariamente, com uma mulher intrigante, vivida, malévola, para sofrer na pele a evolução forçosa da vida, o que, no fim das contas, o impulsionaria a ser um bom escritor. Ernie tinha seus problemas, eu tinha os meus, mas, acima de tudo, eu o idolatrava, e aquela informação serviu para que eu vestisse minha casaca de poeta, prateada, gasta, mas que me causava boa impressão, de um desleixo intelectual e impertinente,e que me dava coragem justamente por ser estranha e fora de moda.

E eu havia tido as mulheres que, eu acreditava, determinavam a cartilha do “bom escritor”: histéricas, estúpidas e competitivas, das que ameaçam com facas, com os olhos fora de órbita e, no entanto, charmosas e intensas, justamente por ser impossível imaginar o que fariam comigo quando eu menos esperasse. Eu confundia aquela curiosidade equivocada e juvenil com malícia, experiência, e achava que, no íntimo, poderia ser parecido com Hemingway, e até mesmo seria possível encontrar muitos como eu entre os meus diversos outros heróis. Mas saber sobre Hadley, com quem Hemingway tinha, por fim, enfiado Paris no bolso, num casamento-relâmpago, e saber que ela era quase uma solteirona aos vinte e nove anos, aquilo tudo me fez vestir a casaca prateada e sair de casa assoviando a Marselhesa, com o ímpeto de um Napoleão.

A noite estava fria, atípica, e me lembro que havia um motivo, mesmo que não muito claro, para eu subir até o bairro íngreme de Santa Teresa, que é a nossa espécie de Montmartre carioca, ou pelo menos algumas pessoas pretendem que ela o seja. Sim, o motivo, além da notícia reveladora e da profunda sensação de que eu poderia, enfim, ser um grande escritor, ou seja, além dessa confiança totalmente desmedida, havia Lucia, cujos seios eu havia, uma semana antes, elogiado o suficiente para, quem sabe, tê-la deixado envergonhada e, não sei se provavelmente, mas acreditava, instigada com aquela “triste figura que dizia coisas a esmo”.

Ela havia me convidado formalmente para uma festa em sua casa e aquilo era novo, fosse vindo dela ou de qualquer mulher. Minha última tinha sido minha esposa e, juro a vocês, quase nos matamos, e creio que um pouco de sangue conjugal não impressione mais ninguém. Mas seria honesto afirmar que ela era exatamente o tipo de mulher que eu imaginaria para Hemingway, ou John Dos Passos, ou Fitzgerald, ou Sherwood Anderson, e toda aquela turma: uma atriz coquete, porém já com seus quarenta e cinco anos, por quem eu havia me apaixonado simplesmente porque havíamos trabalhado juntos numa peça, ela fazendo a Emília de Otelo, eu como tradutor, que nem bem sabia o que estava fazendo ali. Me apaixonei e digo por quê: eu já havia visto uma peça com ela, e a vi saindo, de banho tomando e muito séria, passando pelo público que esperava os atores após a estreia, sem olhar para nada e para ninguém, apenas uma atriz cumprindo seu trabalho, e aquilo, aquela pretensa falta de vaidade, faz um homem escavar o chão até o inferno para descobrir o que existe por trás daquilo, com toda a certeza de achar alguma coisa grave, mas sem a menor ideia sobre o que fazer quando chegar a hora.

“Grande coisa um casamento fracassado”, eu pensava subindo no ônibus até a casa de Lucia. “Todos fracassam no casamento, o casamento é o símbolo do fracasso, o ser humano não é capaz de suportar nada estável por muito tempo, por isso tudo nos exige que façamos isso e, afinal, muitos permanecem casados, mesmo fracassados, então grande coisa, não preciso disso, dessa ideia fixa de ter que ser bem sucedido, enfim, num casamento de aparências. Porque tudo que é bem sucedido é feito de aparências”. Eu sabia muito bem que, mesmo que se perguntassem: “Você gostaria de estar agora, assim como está e sem mais nada, na Paris dos anos vinte?”, e eu no fundo tivesse um puta cagaço de ter que competir diretamente com Joyce e Dos Passos e Hemingway e Fitzgerald, fora todas as questões com relação a ser livre e fora dos parâmetros conformistas instituídos pelo fim da primeira guerra e que, agora, depois de outras tantas muito piores, não fazem mais sentido algum, eu diria que sim, eu aceitaria morrer de fome e enxergar as pinturas com as cores mais vivas enquanto contraísse uma febre tifoide por ter coladas as paredes do intestino. Mas ali estava eu falando sozinho com minha casaca prateada de poeta, e o primeiro casamento de Ernest Hemingway com uma mulher encantadora apesar de ingênua, virgem e sem experiência alguma, de um modo esquisito mais lindo, me jogava a frente diante de um acaso intuitivo.

Sim, eu sentia alguma coisa por dentro, escorrendo pela região do umbigo, alcançando o saco escrotal e voltando com toda força até a cabeça. Havia a presença do amor, não o amor egoísta e exclusivo que se chama “amor verdadeiro”, mas um amor bem maior, mais amplo, que alcançava a porta do ônibus e cada paralelepípedo, que dava outra cor ao pipoqueiro ou à prostituta sonolenta, um amor, portanto, antecipado ao pavor do amor objetivo, amor solto de rua que faz deslizar charmosamente na incerteza.

Apesar de toda empolgação, Lucia me recebeu friamente, mas eu convenci a mim mesmo que aquilo havia acontecido porque ela estava completamente envolvida e sem saber como agir. Talvez eu apenas pensasse muito em Hadley, seu pai suicida, o pai de Ernest suicida, ela no sótão da irmã mais velha, vinte e nove anos, sem nem mesmo ter sentido a mão de um homem entre as pernas ou um dedo enfiado com violência na sua boca, e pensando em coisas que não nos servem como exemplo acabei utilizando-as justamente como exemplo e, sem me importar com o que eu achava ser um furor uterino que abalava as estruturas de Lucia, entrei seguro de mim e, sem saber, prestes a me perder completamente.

Rapidamente me embriaguei e, com o intuito de finalmente jogar às claras com Lucia e, ao mesmo tempo, demonstrar meu descontentamento com sua arrogância juvenil, que disfarçava um amor velado, passei a me comportar como um perfeito idiota. A bebida rolava solta e, para incrementar meu teatro, resolvi jurar a todos os presentes que havia caído de paixão pela mãe da Lucia, Graziela, argentina refugiada, mãe solteira, fugida da ditadura, una madre de mayo, que ainda por cima falava sobre pintura e literatura e, quando sorria, era possível reconhecer de forma poética o tanto que ela havia sofrido, sem deixar de ser bela.

Foi uma bela cartada. Graziela gargalhava das minhas piadas infames e parecia me tratar como um lenhador sensível, enquanto as outras pessoas na sala, nas quais eu ainda não havia reparado, sabia que era um casal e uma garota, estas pessoas e Lucia, todas riam, mas eu podia jurar a mim mesmo que Lucia um pouco menos, dizendo umas às outras: “Graziela gargalhando, ela gostou dele”. Aquilo algum dia chegaria ao status de paixão platônica, deslocada nas épocas e na experiência, mas naquele momento foi o grau exato de autoconfiança que eu precisava para seguir bancando o imbecil, um papel adorável quando você não sabe realmente o que fazer.

Num belo momento senti minha voz empastar. Lucia finalmente havia se aproximado, isso depois de eu ter contato uma história que realmente fez as pessoas mijarem de rir e me botou no céu das atenções: a história de como perdi a virgindade.

- Meu pai falou: compra um vinho, toma um banho, espera ela chegar. Eu disse, nervosíssimo: tudo bem. Saí, comprei o vinho, tomei banho, penteei os cabelos, eu estava horroroso, me deu uma angústia enorme e eu liguei pro meu pai outra vez. Pai, não funciona. Estou apavorado. Não vai dar certo. Acabei de vomitar na pia. Ele disse: você não bebeu o vinho? Você tem que beber o vinho... Você não tem um baseado? Se puder, fuma um baseado, é afrodisíaco, e toma o vinho e espera a menina e relaxa. Só faz o favor de chupar ela direito, é isso que importa. E muito bem, eu tentei de tudo e nada havia mudado na minha ideia de que aquilo seria uma catástrofe, então, liguei para o meu pai outra vez, e nem sabia o que dizer, acho que disse que sairia de casa sem aviso, que não estaria em casa quando ela chegasse, porque ela era experiente, tentei explicar, uma mulher do samba, uma pagodeira, e eu havia dito a ela, ou tentado demonstrar, que eu tinha muita experiência, e então meu pai ficou em silêncio por um ou dois minutos, e disse que eu fosse até a gaveta da cômoda tal e pegasse tal pílula e, antes uns quinze minutos da menina chegar, tomasse aquela pílula e a esperasse tranquilamente, e que, no decorrer da noite, depois do vinho e do baseado, antes que eu apenas tocasse nela, no braço dela que fosse, ele disse, antes mesmo disso tudo começará a acontecer perfeitamente, talvez até perfeitamente demais, ele disse, e eu tomei a pílula, é claro, imediatamente, e quando ela chegou eu estava bêbado e com o pau em riste, e ela olhou aquilo e talvez até possa ter se impressionado um pouco, mas aquilo não acabava mais, eu tinha gozado em dois minutos mas o meu pau continuava de pé, ela olhava, de quatro, para trás e via minha cara de quem estava entendendo muito pouco, mas o pau em riste deixava a pagodeira confusa, e ela dizia, você ainda não gozou? e eu dizia que comigo era assim mesmo, que eu gozava muitas vezes na mesma foda, e, por algum motivo, ela não parecia totalmente convencida, e eu realmente estava preocupado com coisas como o vinho, as sensações mais íntimas, pegar na mão, então vocês imaginam, depois dessa, como foi a frustração da minha segunda foda.

No momento em que disse isso eu não saberia que aquele teria sido o meu grande momento da noite. Todos riram e até mesmo Lucia abriu aqueles dois dentes separados que ela tem e chegou a me servir de uísque. Quando, é claro, começa a minha derrocada.

Eu realmente não havia reparado muito bem em ninguém que estava lá, mas, conforme as pessoas começaram a bocejar e as histórias já não eram mais tão interessantes, comecei a ver que havia poucos de nós. Lucia, cambaleando, se aproximou com a garrafa de uísque na mão.

- Olha, fica com a garrafa. Você tá péssimo. Pode dormir no sofá se quiser.

Segurei o objeto e, quando virei para o sofá, havia ali uma menina, sentada de pernas cruzadas e me olhando. Eu me lembrava vagamente dela. Uma vez ela estava com a Lucia e vestia uma roupa tão masculina que não tive dúvidas de que era lésbica, até que subimos todos até minha casa e o amigo que mora comigo a levou para o quarto. Depois tinha visto a mesma menina outra vez, com um chapéu de mulher dos anos vinte e um ar enfadonho. Me olhou e eu disse algo canalha como “ah, então você é uma menina”, e ela respondeu qualquer coisa como “uma pena não poder dizer o mesmo sobre você”, e foi embora, e aquilo era tudo. Mas eu precisava fazer alguma coisa para trazer as coisas de volta ao chão. Como sempre, uma ideia desesperada, de quem precisa sempre decair para se reconhecer, sentir onde pisa, para saber onde vai se derrubar.

- Escuta, como dizer... Você gosta... das pessoas? – eu disse.

- Você quase conseguiu... Foi por um triz! Uma pena.

Mas, talvez, agora fosse a primeira vez em que eu reparava de verdade nela. Não haveria, de todo modo, como não ser. Estávamos os dois sozinhos na sala. Cheio de uísque, comecei a ficar ousado. Ofereci meu incrível casaco, minha armadura prateada, para ela se proteger do frio. Estávamos distantes. Eu punha músicas do Erasmo Carlos enquanto ela bebia um pouco rápido demais e olhava pela janela, aparentando certo desinteresse, o que eu automaticamente julguei como um amor arrebatado que não pode se deixar perceber. Mas, como dizem, eu tenho a desprezível inclinação em sempre banalizar o amor.

O que importa é que, ao vê-la com verdade pela primeira vez, o mais estranho pensamento me passou pela cabeça, e eu disse a mim mesmo: “Você ainda sentirá muita falta desta mulher”. Mas naquele momento eu ainda não sabia que, por uma noite, por aquela noite, seríamos o casal expatriado na Paris dos anos 20, enquanto eu subia sobre ela no sofá e com minhas duas mãos nos seus peitos que, eu reparei, eram enormes e os mais bonitos que eu havia visto, eu disse a ela: “São os peitos mais lindos que eu já vi”, e descemos juntos até as profundezas, aquelas mesmas de cada um que nunca devem ser tocadas ou mesmo vislumbradas, porque o encontro com o céu acaba por cegar os olhos, mas disso ainda não sabíamos quando deixamos nossos formidáveis fluidos de amor na cama de Lucia, quem diria, Lucia, que apareceria Julia e que eu estaria sem meu casaco prateado tão famoso em tantos becos e em cuja sombra me sinto Orson Welles, quem diria que iríamos ainda para a minha casa e depois comeríamos uma fartura de carne e tomaríamos cerveja e riríamos como o casal Hemingway de braços dados como chaminés de cigarros e o hálito ácido da juventude em nossos corpos assustados, nas ruas com estranhos chapéus e correndo de atropelamentos e discutindo aos prantos e com apelidos ridículos e carinhosos como Tubi, Tuti, Taub, Touch, e no dia seguinte ela me ligaria justamente quando eu estivesse pendurado numa escada e quase caindo, e ela diria “oi, tudo bem?”, e eu “oi, tudo bem”, e um silencio reinaria comigo a ponto de cair da escada e, quase caindo, com nervosismo eu diria “você tem alguma coisa a dizer?”, e ela gaguejaria mas não seria grosseira como eu, ao contrário, escutaríamos por um bom tempo aquelas velhas e tão nossas palavras, sei que o mundo pesa muitos quilos, e nós sabíamos, mas enfrentamos a chuva fria e tínhamos os dentes de fora, e nos encontraríamos outras tantas vezes e eu diria a ela meus poemas novos e faria ainda para ela tantos outros poemas que hoje já não são mais novos, mas e que novidade há no amor afinal?


Comentários

Léo, é admirável esse seu talento de contar história dentro de história.
Mary disse…
Leo, faço minha as palavras do seu amigo Eduardo: é incrível como você sabe contar a história. Ficou linda. Bjs.
Mary

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