O MUNDO FALA PORTUGUÊS E OUTROS CASOS
>> Zoraya Cesar

Uma vez, faz muitos anos, ouvi a seguinte história: o sujeito estava numa festa — daquelas cheias de figuras do high society (essa história é antiga, veja você, ainda não havia celebridades, mas alta sociedade). Sim, como ia dizendo, lá estava ele, vestindo seu black tie, com seu copo de whiskey na mão (era uma festa elegante, já disse, não serviam uísque), admirando a elegância dos outros convidados quando, de repente, adentra o salão a Elke Maravilha, toda, da cabeça aos pés, vestida de Elke Maravilha. Só as plumas e paetês ocupavam o lugar de duas pessoas, os brilhos poderiam fazer as vezes de faróis na neblina.

Pelas voltas que o mundo dá, e vasto é o mundo, se eu me chamasse Raimundo, não seria rima nem solução, mas cópia descarada do Carlos Drummond, voltemos à festa. Pelas voltas que o mundo dá, calhou de ele, um amigo e a Elke dividirem o mesmo metro quadrado. Ao se ver tão perto daquela exuberante figura, não se conteve e disse ao amigo que aquela mulher, vestida daquele jeito, era um acinte, um descalabro, um horror. E que ela não deveria estar ali, não era do mesmo “nível”, e além de tudo era feia e esquisita. Falou tudo em alemão, para só o amigo entender.

Alemão é uma língua difícil, certo? Pouquíssimas pessoas a conhecem, certo? Errado. Elke Maravilha não só falava alemão, como francês, inglês e italiano e fez o tal sujeito passar a maior vergonha de sua vida, ao virar-se para ele e dizer em alto e bom germânico som que ele não passava de um esnobe mal-educado.

Por isso, cuidado com o que você fala, achando que ninguém vai entender. Nada de aproveitar o fato de estar em terra estrangeira para soltar a língua e destilar veneno. Nada de se deixar levar pelas aparências e achar que a pessoa esquisita ao seu lado é uma azêmola. Lembre-se do caso da Elke. E se esse exemplo não bastou para convencê-lo, eu conto mais três (poderia contar sete, mas você vai dizer que estou mentindo).

Vamos lá...

Era uma vez, numa audiência trabalhista, um advogado muito feliz. O colega que representava o acusador de seu cliente não comparecera nem dera explicação. Na sala, além dele e do pobre-diabo que estava sem advogado, apenas estagiários e uma figura cuja roupas largas e cabelos desalinhados e meio sebosos lhe davam um ar de profeta do apocalipse. Devia ser daqueles malucos, bastante comuns em audiências abertas ao público.

O juiz olhou em volta, perguntou se havia algum advogado presente, o tal profeta levantou a mão, e o juiz o nomeou como defensor ad hoc¹. Causa ganha, pensava o causídico, rindo com seus vade mecuns.

Nem bem se passaram três singelos minutos e o sujeito desenxabido terminou a leitura dinâmica do processo, apontou dois erros na contestação do ex-feliz-advogado e ganhou a causa para o ex-pobre-diabo. O mal ajambrado e esquisitão era nada menos que doutor em Direito Trabalhista pela UFRJ. As aparências enganam, nunca se esqueça. Evite situações vexatórias.

E por falar nisso, cuidado também com o que fala por aí, por esse mundo afora. Quer ver?

Praga, República Tcheca: Você está olhando uma linda loja de doces e comenta em voz alta que não teria coragem de comer um doce praguense (tá, eu sei que é tcheco, não seja tão exigente como a amiga da Rita. Lembram da Rita?), pois não tinha certeza quanto à higiene do local. O rapaz que está bem ao seu lado, limpando a mesa, ri e fala num português arrastado, mas perfeitamente inteligível, que a loja era muito limpa, que você podia comer tranquilamente. Não morra de vergonha não, ou fica sem saber a história: o rapaz passara todo o ano anterior fazendo serviço voluntário no Rio de Janeiro, adorava o Brasil e os brasileiros. E era o responsável pela limpeza da loja. Claro que você entrou e comeu o doce, não é? E não morreu de disenteria. Nem de vergonha, por favor, que aí vem outra.

Primeira viagem de Luiz e Luizinha (parece piada, mas não é!), os dois mal falam inglês, muito menos francês, que dirá holandês. Irritados com a dificuldade de alugar um carro, já que não sabiam se expressar, desandaram a reclamar da loja, dos holandeses, de tudo. Ao que, um dos atendentes, ouvindo-os (essa mania de brasileiro de reclamar em voz alta!), falou, com o musical sotaque lusitano: “Ah, são brasileiros? Então vamos conversar em português, para melhor atendê-los”. Até hoje o casal não sabe onde se enfiar de vergonha.

Eu prometi que seriam apenas três, mas, para você não dizer que só conto histórias de segunda mão, vá lá, essa aconteceu comigo. Por favor, não espalhem que meu namorado não pode saber: estava eu, catita e airosa, andando alegremente pelas ruas de Garmisch Partenkirchen (uma cidadezinha na Alemanha, linda de doer, muito conhecida pelo pessoal que pratica esportes de inverno), quando passo por um homem muito... er... hummm, digamos, bem apessoado. Não resisti à vontade de brincar e falei: “Mas você é bonito, hein!”, e recebi um “obrigado” de volta. Quase morro ali, durinha, na hora! Educadamente, ele levou na brincadeira, e num português quase perfeito me disse que era casado com uma brasileira e vivera no Brasil por dois anos. Juro que, se eu o vir de novo, corro para o outro lado da rua.

E agora, convenceu-se?


¹ É o advogado nomeado pelo Juiz para funcionar em determinado ato processual, por exemplo, uma audiência. Este recurso é utilizado quando a legislação determina a obrigatoriedade da presença de um advogado, mas esse, por algum motivo, não comparece; é um substituto ocasional para um ato processual. [Voltar ao texto.]

Comentários

Zoraya, por isso que, quando fui à Itália, fiz questão de aprender minimamente o idioma. :) Muito divertidos os causos.
Érica Pascoal disse…
Já fiz meus comentários on line, mas repito agora que ri muito, pois imaginei você lá... as situações são todas a sua cara rsrs
bjs
Unknown disse…
Zoraya! Adorei os casos. Vou mostrar pra minha irmã que adora tentar conversar comigo em inglês pra falar mal dos outros...kkkkkkkk.....logo inglês, que todo mundo fala.
Bjos!
Delícia de texto! Também passei por uma dessas, que vale a pena contar.

Estava em Londres, na recepção de um hotel, esperando um ônibus de excursão. Perguntei ao recepcionista sobre o horário, e ele respondeu-me que ia verificar. Ao virar-se para procurar a informação, começou a resmungar em voz alta, com vários palavrões irrepetíveis aqui: o gajo era português, do Norte de Portugal. Quando exclamei: "ah, você é português?", o pobre diabo ficou lívido de susto, achando que eu poderia dedurá-lo à gerência, o que seria demissão na certa. Ri muito da situação, o meu ônibus chegou, e nuca mais o vi. Mas garanto que ele vai tomar mais cuidado ao pensar em voz alta outra vez. :-)
Aretuza disse…
Zoraya,
Os casos estão muito divertidos e fazem a gente se lembrar de outros vários que a gente vai ouvindo e, às vezes, também sendo o protagonista. Adorei!
W L disse…
Não é bom implicar com a Elke em nenhuma língua, a mulher é imensa e anda armada, ou melhor, veste armada. Tudo que ela usa pode ser usado contra vc...

Adorei o texto, tem humor e humor é uma forma superior de inteligência.
Alfonsina disse…
Que texto delicioso Zoraya, adorei ler os casos, principalmente o fan Elke! Como já comentaram por aqui, todos nós já vivemos uma situação parecida, o que torna seu texto ainda mais irresistível. Me surpreendi, tinha um tempo que não te lia e esperava uma história com nomes esdrúxulos, magia ou ao menos assassinatos...rs.

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