CAIR EM SI >> Carla Dias >>

Enveredou no seu sorriso a nitidez da sinceridade. Dizer não se é verdade, por que deveria me ferir? Mas fere, apunhala devagar, como se cavasse meus poros em busca de novidades, o desfecho da canção triste, orquestrada pelo silêncio, salientada pelos riscos da lâmina do desacerto. Valeu-me um sorriso de partida depois do cumprimento: até mais ver.

Desde então, pouco eu vi, e não foi a cara da rua ou a dos irmãos, das irmãs, dos primos, da prole dizimada pela conquista dos seus próprios espaços, nos quais reinam sem a permissão dos padrões, patrões infiltrados na pseudo-hierarquia da liberdade. O que eu vi veio de dentro das vestes, além, do dentro da carne, aquém, da infertilidade da eternidade, do som quase mudo do sangue a pulsar em veias saltadas. Enxerguei através do espelho e enxertei na minha realidade a companhia sublimar da matemática ao somar a cada dia a espera pelo seguinte, e a subtrair a ansiedade tresloucada.

Não que eu estivesse alimentando a comilança do falatório sobre mim, sentando-me à mesa para degustar as probabilidades de eu precisar de freio para uma provável loucura. Será que eles não se dão conta das delícias que a loucura oferece? Esquecer a data do aniversário, comer com as mãos, ignorando a etiqueta, falar baixo demais e ainda brigar por não ter sido entendida, declamar poesia do alto de uma árvore, lembrar dela debaixo da água de um lago, enquanto cronometrando o tempo que consegue ficar submerso, petrificar aqueles que se matam por tradição ao dizer sobre eles as calúnias catedráticas de um louco: cafetões de destino! Bastardos filhos da órfã compreensão!

Refleti sobre o caminho que venho trilhando, desde aquele sorriso de negação, e não posso dizer que morro de felicidade pelo feito, porque não fui serva da loucura como deveria ter sido, mas sim irmã do acaso, deixando-me levar pelo proveito do outro, ao invés do meu próprio. E não adianta me dizerem que isso tem a ver com virtude, que é bom quando a pessoa se desapega de tudo e deixa de lado o egoísmo. Sem o egoísmo o ser humano para de pensar como indivíduo e qualquer outro lhe toma a alma em posse. O egoísmo também tem a faceta de ser certificado de propriedade, e na minha tolice desenfreada, acabei perdendo minha história por conta da usucapião de alguns que se instalaram na minha realidade.

Manhã de segunda-feira, as pessoas se preparam para o dia como se fossem encontrar um amante apático, pronto para bater o ponto na paixão acidental que não consegue alforriar. Coloco a minha melhor roupa, a pior aos olhos da minha irmã mais velha, a mais bonita na fotografia tirada em uma quarta-feira de outono, a mais duvidosa para a entrevista de emprego, e a mais a ver comigo, de acordo com a cobradora da estação de trem. Tantas possibilidades.

Chego ao local, tiro do bolso o envelope com as recomendações do meu irmão, nas quais certamente ele não acredita. Favor emprestado, a ser cobrado, posteriormente, talvez com uma garrafa de vermute eu resolva este problema.

Amargo por um instante e então entro: em que posso ajudá-la? A recepcionista sorri, mas não sorri, faz de conta que sorri, trabalha para sorrir? Não! Sorri para trabalhar. Estão me esperando, e entrego a ela o papel meio amassado, ela me lança um olhar de quem não viu as gavetas arrumadas como deixou pela manhã, de quem seria a culpa? Minha, talvez, ao menos por hoje. Aguarde.

Sento-me. Fotografias enquadradas cobrem as paredes, um nudismo comportado, uma criança brincando, um homem dirigindo, enquanto na sua face rola uma lágrima, uma mulher deixando uma lágrima rolar na sua face, enquanto dirige seu carro, um pássaro - águia? -, um castelo, dois pares de pernas enroscados: dissertação sobre o tudo que o nada conta. O erotismo da vigília.

Chama meu nome a recepcionista de sorriso contratado e estira o braço apontando para onde devo ir, e uma porta semiaberta me espera. Portal do sacrifício? Do paradisíaco sentido da contemplação? Caminho, ignorando de vez a presença da recepcionista tripudiada pelas normas do trabalho, e entro, bom dia, e a resposta vem curiosa: espero que seja. Coloco a bolsa na cadeira ao lado, cruzo as pernas e espero, pelo  quê? Só Deus sabe, se é que Ele teve tempo de decifrar minha instabilidade.

Uma mulher com sessenta anos - apostaria nisso - analisando o meu currículo, verificando se posso dar conta de um trabalho que ela considera decente e necessitado de responsabilidade. Às vezes, ela ergue os olhos e me fita, tão plena na sua roupa de grife, como se quisesse procurar nos traços do meu rosto o endosso para o que o papel diz. E então solta belo chapéu, e eu me sinto pega desprevenida, mas rebato: foi da minha mãe.

Ela me faz uma série de perguntas casuais, coisas sobre o tempo, se eu acho que irá chover, depois fala sobre a recomendação do meu irmão e, para finalizar, pergunta se eu gosto de café em garrafa térmica.

Minutos depois, estamos na padaria em frente ao escritório dela, pedindo pão bem branquinho, por favor, conferindo se o café é realmente fresco, porque também ela não gosta de garrafa térmica, de café de muito antes. Saboreamos o tempo que não temos. Eu por estar passando da idade, que dizem ser a da responsabilidade, e ela por já ter vivido o dobro do tempo que eu vivi.

Ela conta sua história – paixões, filhos, netos, profissão – e eu calada, consciente de que nada posso fazer além de escutá-la, tentar compreender as cartadas vilãs que a vida planejou para ela, e continuar sem compreender o que faço na companhia dessa mulher. O que fui fazer naquele escritório. E a secretária? Estaria ela pensando em mim com o ódio de quem perdeu a vez, imaginando que, se eu não tivesse aparecido, seria ela a passar aquele tempo ao lado da chefe, e que, manifestando o seu companheirismo, pudesse melhorar os números no seu holerite?

Pergunta se tenho filhos, respondo que não e que eles não me fazem falta, pois tenho televisão, a cabo, DVD player, internet banda larga e conta no banco com limite pré-aprovado. Na minha geladeira, repousam imãs com telefones do disque-disque que for preciso, e tenho vinho me aguardando, assim como uma pequena biblioteca recheada de livros dos bons, alguns angariados nos sebos da cidade, depois de horas respirando o pó do tempo. E ela sorri como quem aprova a diferença entre nós, como quem não se sente alardeada por eu virar páginas e reler poemas de Rimbaud, enquanto ela nina a neta mais nova, ainda um bebê aprendendo a respirar a vida.

Ela conta que conhece meu irmão, desde a faculdade, quando ele era aluno e ela professora. Diz que se trata de rapaz muito interessante, e eu, acometida pela perseverança da imaginação, lembro logo do quadro no consultório dela: pernas enroscadas, P&B. Em seguida, ela desfere o golpe, perguntando o que diabos eu faço aqui. Tomando o controle da minha vida? Questiono e não respondo, pois de mim a resposta soaria pecado. Não acho que a vida deva ser controlada, mas sim bem aproveitada, e na verdade, estou aqui mais por curiosidade em saber como me comportaria do que disposição para mudar. Eu pinto quadros, respondo a pergunta dela sobre qual é a paixão da minha vida. E ela sorri, mais uma vez, e eu penso na funcionária dela, atendendo pessoas com algum tipo de problema e que, ao invés de receberem um aconchego, recebem é o sorriso falseado daquela que lutou para estar onde está. Como diz a canção, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, ou de quem pretende ser.

Voltamos ao consultório, amigas de meia-hora, filosofando cada uma sobre o próprio universo. A secretária me encara e há mágoa, raiva, descrença naquele olhar. Ela sim deveria ser cogitada como assistente da médica renomada, não eu, quem cursou o curso que não queria somente para poder jantar sem ser cobrada pelos familiares. Foi o preço que paguei por um pouco de paz, quando tinha paciência para jogar.

E nos sentamos e nos fitamos. Eu já sem pudores em negar que aquilo era o que eu queria. Já segurando a aba do chapéu hippie-hipnótico como quem dá adeus e sai sem enumerar explicações. Ela interrogando sobre os meus quadros, ouvindo, atenta, o que eu digo. E assim, no final do nosso momento de encontro-confronto, entrega-me o bilhete do meu irmão. E eu leio, releio, é como se tivesse sendo devolvido o espírito cigano emprestado aos deveres impostos.

O bilhete deixa claro que eu não sirvo para este trabalho, mas que seria importante se a doutora pudesse me convencer disso, antes que as imposições se tornassem insuportáveis e não restasse mais do que aceitá-las. E me dou conta de que ele sabe quem sou e que presta atenção à minha biografia, mesmo quando desacredito de mim.

Surpresa... Surpresa...

Encaro essa mulher, bela na sua idade, cabendo perfeitamente na sua escolha, autora da sua personalidade. Percebo que assim são os que tomam o rumo escolhido por eles mesmos, sem se permitirem ser aprisionados ao desconsolo de tradições equivocadas.

Ela sorri e eu sorrio de volta. Levanto-me, estendo-lhe a mão, cumprimentamo-nos. Faz com que eu prometa deixá-la ver alguns dos meus quadros, e eu aceito, mediante a condição de, um dia desses, conhecer os netos dela. Passamos a ter, então, um trato vital, de troca e respeito, de espaço sendo preenchido sem que seja ultrapassado o limite de cada uma.

Antes de sair do consultório, fito a recepcionista e ela sorri para mim, ainda mais sem vontade. Não retribuo, mas continuo a encará-la. E os quadros parecem gritar nas paredes, horrorizados pela escravidão da imagem dela, sequiosa pelo o que não quer lhe pertencer.

Eu, que desde sempre confrontei a imagem, retratando através de quadros sentimentos caóticos e sublimes, sinto-me desconfortável diante do sorriso dessa mulher. Saio sem dizer uma palavra, disposta a não me indispor com a vida por ter feito a escolha que não era a minha. Sucumbo ao prazer dessa coisa-loucura pela qual dizem eu estar possuída, e que tentam em vão lapidar.

Dou-me conta de que a liberdade de escolher o caminho a ser seguido é a única coisa que faz a diferença numa vida inteira. É a identidade da existência.



Comentários

Anônimo disse…
Muito linda a cronica ^^

Também possuo um blog e gostaria de divulgá-lo:
http://cronicasdogauli.zip.net/
Personagem de romance, Carla... :)
Zoraya disse…
"não fui serva da loucura como deveria ter sido, mas sim irmã do acaso". Carla, eu simplesmente amei sua frase. E ainda por cima, me deu uma dor tão funda de identificação. E que texto sentido!

Fonte: Crônica do Dia
Carla Dias disse…
Anônimo do Crônicas do Gauli : )
Obrigada pela leitura e pela indicação do blog. Abraço!

Eduardo... É personagem em descontrução. Vai saber aonde vai na hora da reconstrução.

Zoraya... Obrigada pela gentileza do comentário. Acho que quando nos damos conta de que estamos no sentido oposto ao que deveríamos, dói um pouco, então depois vem a excitação de construir uma realidade de acordo com o que somos e desejamos

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