AS DUAS VOLTAS >> Kika Coutinho
A fazendinha estava lotada. Talvez fosse pelo feriado, ou porque era um dia de muito sol, fato é que os pais disputavam cada pedaço de capim que lhes era oferecido, para que as crianças alimentassem os carneiros e as cabras. Era uma festa. Logo abaixo, algumas recebiam milho nas mãos para alimentar os patos, e via-se no rosto dos pequenos um misto de emoção e medo ao dar de comer para aqueles animais. Eram essas alegrias que faziam valer o ingresso de 30 reais...
Mais alguns passos e vimos a fila para andar a cavalo. “Olha o pocotó!”, falamos idiotamente para a nossa filha, que não hesitou em nos puxar com suas pequenas mãozinhas para perto do bicho. Lá estávamos nós, na fila para que ela passeasse um pouco sobre um cavalo cansado que, a cada duas voltas, parava, deixava que lhe tirassem uma criança para que outra subisse em seu lombo. Foi lá, nessa curta fila, que o fato se deu.
O menino era pequeno, devia ter uns três anos, deu as duas voltas a que tinha direito e, quando chegou a hora de dar lugar ao próximo, agarrou firme seus bracinhos ao cavalo, implorando para dar mais uma volta. O pai, vendo a fila que esperava, tirou o garoto à força, enquanto o pobrezinho abria um berreiro. A mim, deu dó do menino, mas era a vida. O pai voltou para a fila para que pudessem ganhar mais uma rodada. Chegou a minha vez, a de outras crianças, e eu ainda estava ali quando vi chegar, de novo, a vez do menino. A cena se repetiu. Ele deu as duas voltas, chorou, o pai o arrancou, voltaram para a fila. Logo percebi que não era apenas a segunda vez. Os dois estavam há algum tempo nessa maratona: fila, passeio de duas voltas, choro, fila de novo... “Ah, vamos também de novo, filha?”, sugeri, já entrando mais uma vez na fila, logo atrás do garoto com o seu pai. Puxei conversa:
- Ele adorou o cavalo, hein?
- Pois é - o pai respondeu, um pouco emburrado. - Mas deveria ter mais cavalo, né? Um só é pouco.
Concordei. O ideal era ter pelo menos dois, mas não tinha dois e, portanto, aproveitemos a oportunidade de ensinar às nossas crianças que nem sempre se tem dois daquilo que se quer muito. Às vezes não se tem, simplesmente... O homem engrossou um pouco:
- O injusto é que a volta dele é mais rápida. As crianças menores vão devagar, levam mais tempo. Ele vai rápido e as duas voltas dele acabam num minuto. Ele percebe isso e, como tem um senso de justiça muito apurado, se revolta, né?
Opa. As crianças menores eram o grupo do qual a minha filha fazia parte. E não ia mais devagar. Era sempre a mesma pessoa puxando o cavalo, talvez fizesse alguma diferença de segundos, mas não era o tipo de resposta que eu esperava ouvir.
- Chegou, vai lá, filhão.
O moço saiu de perto e achei por bem encerrar o assunto.
Quando o menino chorou pela décima vez, vi o pai buscando o administrador da fazendinha. Começou então uma discussão. O pai dizia que tinha que ter mais cavalos, e pronto. Falou que não ia pagar o ingresso. O gerente respondia que estavam providenciando mais cavalos, quem sabe nas próximas vezes, ao que o homem respondeu:
- Meu amigo, eu quero mais cavalo hoje! Senão não vou pagar essa porcaria aqui!
O tom de arrogância e exigência descabida me revoltou. O que acontecia ali? O pai não podia lidar com a frustração de seu filho? O menino não aceitava as duas voltas que lhe eram impostas e, ao invés de lidar com isso, o pai se transformou também em um garoto de 3 anos, cujos anseios não podiam esperar?
Assisti a discussão em choque. Eu e meu marido lamentamos pela educação dessa pequena criança, cujo exemplo era de arrogância e grosseria. Como poderia ser uma criança menos insegura e infeliz?
Eu, confesso, costumo recuar quando me vejo fazendo o julgamento da forma como outros pais escolheram educar os seus filhos. E faço isso não por nobreza, mas porque só depois que fui mãe foi que reconheci em mim vergonhas e fraquezas antes inéditas, e tudo, sempre, com o argumento falho de que pelos nossos filhos somos capazes de tudo. E somos... Mas assistir àquela discussão insana me fez pensar o que, de fato, é pelo bem de nossos filhos e o que é simplesmente estimular neles que sejam caprichosos e mimados, brigões e intolerantes.
A minha filha chorou para sair do cavalo também, mas corremos para ver o porquinho da índia que estava sozinho e disponível para que ela lhe desse uma cenoura.
Logo ela ria alimentando o bichinho, enquanto eu me perguntava como é difícil a arte de educar e, pior, como é impossível a arte de educar uma criança se nós, adultos, somos incapazes de educar - antes - a nós mesmos, com os nossos próprios orgulhos e mesquinharias.
www.embuchada.blogspot.com
Mais alguns passos e vimos a fila para andar a cavalo. “Olha o pocotó!”, falamos idiotamente para a nossa filha, que não hesitou em nos puxar com suas pequenas mãozinhas para perto do bicho. Lá estávamos nós, na fila para que ela passeasse um pouco sobre um cavalo cansado que, a cada duas voltas, parava, deixava que lhe tirassem uma criança para que outra subisse em seu lombo. Foi lá, nessa curta fila, que o fato se deu.
O menino era pequeno, devia ter uns três anos, deu as duas voltas a que tinha direito e, quando chegou a hora de dar lugar ao próximo, agarrou firme seus bracinhos ao cavalo, implorando para dar mais uma volta. O pai, vendo a fila que esperava, tirou o garoto à força, enquanto o pobrezinho abria um berreiro. A mim, deu dó do menino, mas era a vida. O pai voltou para a fila para que pudessem ganhar mais uma rodada. Chegou a minha vez, a de outras crianças, e eu ainda estava ali quando vi chegar, de novo, a vez do menino. A cena se repetiu. Ele deu as duas voltas, chorou, o pai o arrancou, voltaram para a fila. Logo percebi que não era apenas a segunda vez. Os dois estavam há algum tempo nessa maratona: fila, passeio de duas voltas, choro, fila de novo... “Ah, vamos também de novo, filha?”, sugeri, já entrando mais uma vez na fila, logo atrás do garoto com o seu pai. Puxei conversa:
- Ele adorou o cavalo, hein?
- Pois é - o pai respondeu, um pouco emburrado. - Mas deveria ter mais cavalo, né? Um só é pouco.
Concordei. O ideal era ter pelo menos dois, mas não tinha dois e, portanto, aproveitemos a oportunidade de ensinar às nossas crianças que nem sempre se tem dois daquilo que se quer muito. Às vezes não se tem, simplesmente... O homem engrossou um pouco:
- O injusto é que a volta dele é mais rápida. As crianças menores vão devagar, levam mais tempo. Ele vai rápido e as duas voltas dele acabam num minuto. Ele percebe isso e, como tem um senso de justiça muito apurado, se revolta, né?
Opa. As crianças menores eram o grupo do qual a minha filha fazia parte. E não ia mais devagar. Era sempre a mesma pessoa puxando o cavalo, talvez fizesse alguma diferença de segundos, mas não era o tipo de resposta que eu esperava ouvir.
- Chegou, vai lá, filhão.
O moço saiu de perto e achei por bem encerrar o assunto.
Quando o menino chorou pela décima vez, vi o pai buscando o administrador da fazendinha. Começou então uma discussão. O pai dizia que tinha que ter mais cavalos, e pronto. Falou que não ia pagar o ingresso. O gerente respondia que estavam providenciando mais cavalos, quem sabe nas próximas vezes, ao que o homem respondeu:
- Meu amigo, eu quero mais cavalo hoje! Senão não vou pagar essa porcaria aqui!
O tom de arrogância e exigência descabida me revoltou. O que acontecia ali? O pai não podia lidar com a frustração de seu filho? O menino não aceitava as duas voltas que lhe eram impostas e, ao invés de lidar com isso, o pai se transformou também em um garoto de 3 anos, cujos anseios não podiam esperar?
Assisti a discussão em choque. Eu e meu marido lamentamos pela educação dessa pequena criança, cujo exemplo era de arrogância e grosseria. Como poderia ser uma criança menos insegura e infeliz?
Eu, confesso, costumo recuar quando me vejo fazendo o julgamento da forma como outros pais escolheram educar os seus filhos. E faço isso não por nobreza, mas porque só depois que fui mãe foi que reconheci em mim vergonhas e fraquezas antes inéditas, e tudo, sempre, com o argumento falho de que pelos nossos filhos somos capazes de tudo. E somos... Mas assistir àquela discussão insana me fez pensar o que, de fato, é pelo bem de nossos filhos e o que é simplesmente estimular neles que sejam caprichosos e mimados, brigões e intolerantes.
A minha filha chorou para sair do cavalo também, mas corremos para ver o porquinho da índia que estava sozinho e disponível para que ela lhe desse uma cenoura.
Logo ela ria alimentando o bichinho, enquanto eu me perguntava como é difícil a arte de educar e, pior, como é impossível a arte de educar uma criança se nós, adultos, somos incapazes de educar - antes - a nós mesmos, com os nossos próprios orgulhos e mesquinharias.
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