NUDE >> Carla Dias >>


Thou merely, at the day's last sigh,
Hast felt thy soul prolong the tone;
And I have heard the night-wind cry
And deemed its speech mine own.
Dante Gabriel Rossetti



Não tenho os olhos azuis de céu, tampouco a imensidão do Mediterrâneo. A pele já me cobra o tempo, na sua moeda mais requintada, ao mudar a tatuagem de mim na fotografia sem se ater aos meus medos. Assim como o dia, ando com minhas variáveis, mas do jeitinho que o Vinícius de Moraes rezou: de manhã escureço / de dia tardo / de tarde anoiteço / de noite ardo.

Posso dizer, numa rara certeza, que eu ando bagunçada.

Andei lendo, assistindo, presenciando a vida de personagens. Até o mais plausível ser humano carrega o palco nas costas, não? Todos nós representamos papéis, remendamos a realidade, com delicadeza ou desprezo. Porém me veio uma dúvida, daquelas mais caóticas não há: sou eu aqui o personagem ou a pessoa? Devo sentir no presente ou pretender no pretérito imperfeito dos sonhos inacabados?

Falando em sonhos inacabados, folheei o meu diário imaginário e apertei DEL em quase todos os que estavam na minha lista de desejos. Isso porque me disseram, mas com uma eloquência deslavada, portanto tive de aceitar o dito, que sonhos inacabados não são irrealizáveis apenas por diversão do destino. Cabe aí um tanto de preguiça emocional do seu autor. Senti-me tão culpada, mas das culpas afobadas, derradeiras, que resolvi limpar meu baú de sonhos como se limpasse as gavetas dos armários, e sem direito a separar os sonhos recicláveis. No final do dia, só me restava esse nada que tendemos a evitar.

Des-evitei-o.

Despido da gentileza caricata, das que precedem as ofensas, um amigo se declarou certo de que sou louca que só. Em outro momento, eu apenas sorriria e aceitaria o cargo, porque acredito que a loucura, na sua forma metafórica-quase-física, sempre tem algo interessante a declarar. Mas era dia de arrumação interior, e tirar pó de descabimento era uma das minhas funções. Então, dessa vez eu solicitei, olhar marejado de expectativas previamente evitadas, o conhecimento.

Louca de quê?

Bem antes desse dia, alegaram, durante uma conversa informal, que eu era boa companhia por ser divertida. Lembrei-me de uma colega do curso de inglês que vivia dizendo isso. Ela ria das minhas ironias, e elas quase sempre eram tão doloridas, porque já é sofrido demais para mim o dizer palavras no meu idioma, o que dirá em um que não é o meu. Mas ela ria, como se eu tivesse contado uma piada, e eu não sei contar piada, tampouco me lembro das piadas que me contam. Mas eu não sei por que eu me sentia bem com aquilo. Sentia-me normal, mesmo cansada de saber que essa coisa de ser normal é conversa jogada fora.

Definitivamente, eu não sou muitas coisas, e divertida não é uma delas. Mas eu sou, sem dúvida, das que se sentam à beira dos abismos particulares e também dos alheios. E, quem sabe, olhando de fora, isso pareça divertido.

Ele sorri miúdo, aperta os lábios, como se quisesse resgatar as palavras ditas, desdizê-las. Talvez não esperasse se prolongar em explicações. Eu sorrio largo, sentindo os músculos da face, como se eles estivessem em uma aula de ginástica, após séculos de sedentarismo. Então, ele diz que me acha louca porque sou das que enamoram jardins estéreis. E que ao invés de vender a terra onde eles se encontram, fazendo lucro, permitir aos prédios que se estabeleçam e ganhar um pouco de sossego, quem sabe até abrir espaço para a companhia que queira ficar, eu compro buquês para enfeitar a terra, como se dela tivessem nascido crisântemos, girassóis, azaléias... Eu morro de amores pela beleza adotada, principalmente a que permite aos jardins estéreis encantar olhares desavisados.

Termino a minha limpeza interior espanando a tristeza que me sondava. Conto a ele uma piada que perde a graça na minha falta de jeito com ela, e caímos na gargalhada. A louca e o amigo dela.

Acredite, os loucos têm amigos. E contam piadas sem graça à beira de abismos, enquanto se aprofundam na beleza de ser personagem e pessoa.

E há troca de roupas e desnudamento de almas. Há galhofas e lágrimas.


Imagem: Beata Beatrix por Dante Gabriel Rossetti

carladias.com

Comentários

Esta crônica deverá constar no meu livro de cabeceira à hora da morte; lendo-a, as palavras conduzirão meus pensamentos e animarão os delírios e passarei ao outro mundo,caso haja, sem me sentir estar deixando por cá um milhão de sonhos impossíveis.
Unknown disse…
Carla menina, esta crônica está um mergulho de sanidade na loucura que temos todos... Alias, mergulho como fiz em Ibidem. Esta crônica poderia caber lá, para que pudessemos gostar ainda mais de Agnes. Gostar mais de nós mesmos, pois.
Só acho que não devemos limpar o baú dos sonhos (vc tem um só? tenho dezenas deles, entulhados mas sempre limpos), porque a gente nunca sabe quando um sonho bate a porta -- ou bate logo ali e você está passando sem acaso... :)
Beijo grande!
Carla Dias disse…
Louro... Obrigada por conceder vida a estas palavras que você pretende ter à hora da sua morte. Acho que assim vida e morte se equilibram, e os sonhos perdem a capacidade de serem possíveis ou impossíveis, tornando-se apenas sonhos, alimento para alma.

Letti, minha cara Claudia... Fico feliz por você ter se embrenhado na crônica, e principalmente por eu perceber que Ibidem realmente se alojou em você. Não dizem por aí que lar é onde está o nosso coração? Então, às vezes o coração tira o lugar da cabeça, mora nas nuvens, cria cidades inteiras. Idem. Ibidem. E povoa jardim estéreis com a graça de ser de cada criatura.
Tenho apenas um baú, porque gosto de cortinas que sobem, descascar verdades. Tenho um grande baú de sonhos, nos quais moram baús menores, que é para que nunca falte diversidade.
Beijos!
albir disse…
Carla,
me lembra Quintana: "sonhar é acordar-se para dentro". E aí eu repito sua pergunta: no sonho somos pessoas ou personagens?
Carla Dias disse…
Albir... Essa é uma das minhas citações preferidas de Quintana. Que honra despertar essa lembrança em você.
Acredito que no sonho somos pessoas e personagens, assim como na realidade.

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