QUEM AMARRARÁ SEUS CADARÇOS?
>> Kika Coutinho
Uma das lembranças mais antigas que tenho é de um dia frio quando todos almoçavam na casa de minha infância e, lá, onde meus pais moram até hoje, eu estava invisível no meio da multidão.
A multidão era os meus muitos irmãos, talvez alguns vizinhos, e meus pais que se preparavam para sentar à mesa e comer.
Eu, sozinha na sacada, uma menina pequena, pelejava para abotoar a minha própria camisa. Os tênis estavam desamarrados e os botões da roupa não entravam nas suas casas, de forma que eu passava algum tempo ali, maltrapilha, concentrando-me em me arrumar, ainda que minimamente, para o almoço que viria na sequência.
De repente, como que num estalo, lembro-me que meu irmão mais velho me notou. Saiu da sala de jantar e veio em minha direção. Num instante, ajoelhou-se diante de mim e começou a me ensinar:
— Olha, você põe o botão aqui, encaixa, e vira a casa assim. Viu? — ele me explicava pacientemente.
Eu mantinha a cabeça abaixada, guardando no meu silêncio uma satisfação sem limites. Meu grande irmão me notara em meio àquele tanto de gente e tratava de cuidar de mim com um carinho que, na minha curta vida, não tinha precedentes.
Ele foi explicando devagar, enquanto abotoava cada botão de minha blusa. No final, viu o cadarço desfeito e completou:
— Esse daqui, ó, você pega, vira assim, passa por debaixo e puxa. Viu? Vamos fazer no outro, assim, e pronto — ele concluiu, levantando-se devagar e passando a mão no meu rosto, antes de sair.
Pronto mesmo. Eu era uma menina pronta e arrumada. Senti-me, num instante, linda e asseada. Com que cuidado me amavam e me acolhiam, com que atenção ele me viu, e me escolheu, entre aquela multidão de gente que era a minha família...
Hoje, enquanto espero o irmão da minha filha nascer, essa e outras lembranças passeiam pelos labirintos da minha memória. Que ensinamento ela dará para ele? Que lembranças guardarão um do outro? Que cuidados, que carinhos e agrados se farão, mutuamente?
Quando minha filha me beija a barriga, sem entender que ali guardo seu grande amigo — e grande inimigo de algumas horas —, desejo silenciosamente que eles sejam, um para o outro, esses guardiões de amor; e que se notem, quando a vida lhes deixar com o cadarço desamarrado em meio a uma enorme multidão.
A multidão era os meus muitos irmãos, talvez alguns vizinhos, e meus pais que se preparavam para sentar à mesa e comer.
Eu, sozinha na sacada, uma menina pequena, pelejava para abotoar a minha própria camisa. Os tênis estavam desamarrados e os botões da roupa não entravam nas suas casas, de forma que eu passava algum tempo ali, maltrapilha, concentrando-me em me arrumar, ainda que minimamente, para o almoço que viria na sequência.
De repente, como que num estalo, lembro-me que meu irmão mais velho me notou. Saiu da sala de jantar e veio em minha direção. Num instante, ajoelhou-se diante de mim e começou a me ensinar:
— Olha, você põe o botão aqui, encaixa, e vira a casa assim. Viu? — ele me explicava pacientemente.
Eu mantinha a cabeça abaixada, guardando no meu silêncio uma satisfação sem limites. Meu grande irmão me notara em meio àquele tanto de gente e tratava de cuidar de mim com um carinho que, na minha curta vida, não tinha precedentes.
Ele foi explicando devagar, enquanto abotoava cada botão de minha blusa. No final, viu o cadarço desfeito e completou:
— Esse daqui, ó, você pega, vira assim, passa por debaixo e puxa. Viu? Vamos fazer no outro, assim, e pronto — ele concluiu, levantando-se devagar e passando a mão no meu rosto, antes de sair.
Pronto mesmo. Eu era uma menina pronta e arrumada. Senti-me, num instante, linda e asseada. Com que cuidado me amavam e me acolhiam, com que atenção ele me viu, e me escolheu, entre aquela multidão de gente que era a minha família...
Hoje, enquanto espero o irmão da minha filha nascer, essa e outras lembranças passeiam pelos labirintos da minha memória. Que ensinamento ela dará para ele? Que lembranças guardarão um do outro? Que cuidados, que carinhos e agrados se farão, mutuamente?
Quando minha filha me beija a barriga, sem entender que ali guardo seu grande amigo — e grande inimigo de algumas horas —, desejo silenciosamente que eles sejam, um para o outro, esses guardiões de amor; e que se notem, quando a vida lhes deixar com o cadarço desamarrado em meio a uma enorme multidão.
Comentários
Afinal, ensinamos mais com atitudes que com palavras..
Ter amor e dar amor dão sim aquela sensação que vc teve quando se viu de sapatos amarrados, blusa abotoada e encontrada na multidão.
Bj gigante!
Até mesmo daqueles que tive que cuidar dele nesse carnaval...
Enfim, espero que teus filhos sejam tão amigos quanto eu e meu irmão somos. E que percebam que a coisa mais importante dessa vida é ter um irmão do lado! Beijos.