O FRANKENSTEIN CARIOCA
>> Leonardo Marona

Ah, e nós
Que queríamos preparar o chão para o amor
Não pudemos nós mesmos ser amigos
(Bertolt Brecht)

Não sou carioca, mas moro no Rio de Janeiro. E no Rio de Janeiro acontece agora um fenômeno. Não. Não tem nada a ver com a violência da guerra contra o tráfico de armas e drogas. Tem mais a ver com um instinto deformado, causado pelo medo e pela ingenuidade. O carioca sente medo da polícia, não é de hoje. Mas ele também sente medo dos traficantes. Respeitam-se, em geral, no Rio, ambas as facções, e ambas, obviamente, como a cobra que come o próprio rabo, estão profundamente envolvidas, portanto o extermínio de um lado resulta na extinção do outro, como Batman e Coringa, como Alain Prost e Ayrton Senna. Mas eu disse que não tinha nada a ver com isso. E realmente não tem.

Apenas que o carioca já não fala mais. Fala-se sobre novelas, confinações voluntárias filmadas pela televisão com garantias de prêmios e um pouco de fama, fala-se sobre futebol, é claro, mas não muito mais. E fala-se sobre a Tropa de Elite, incorpora-se o sentido de violência contida carregada pelos grupos de extermínio, legalizados ou não. E assim o carioca se tornou uma pessoa dura, sem a ginga maliciosa que o tornou um dia famoso mundialmente. E sem isso não há mais brincadeira na rua que não seja "seu fanfarrão", "pede pra sair", "o bicho tá pegando". Acabou a ternura da navalha de bolso, o papo filosófico de botequim. Com medo, as pessoas se tornam embrutecidas; embrutecidas, as pessoas tornam-se violentas; violentas, as pessoas tornam-se sedentas por mais violência. E, para o carioca, o papo descontraído de rua é o sentido da vida. Aceitar o pé-rapado e alimentar uma boca contraventora são atitudes típicas dos que vivem aqui. O carioca sabe rir da bagunça e sua ternura vem muito dessa risada. Mas ensinaram aos cariocas o "quem-com-ferro-fere" e ele perdeu as feições, tornou-se pálido, a exigir justiça, e agora fala em morte, em "bem e mal", e o carioca foi se apaulistando, ou seja, perdendo a cor, tornando-se da cor das coisas sem cor, como prédios e vigas de aço, ele foi ficando duro e indignadamente desumano. A convivência absurda entre pessoas e objetos no limite de sua tolerância é mais que uma situação degradante, inaceitável, é antes de tudo natural, o carioca, ao lado da justiça, se deprime, se cala. A ordem nunca foi uma base moral aqui. Temos a nobre mania (e já me incluo) de alimentar silenciosamente pequenos monstros. Estes monstros ganham tamanho, se tornam aberrações. E você não pode simplesmente se aproximar de um alienígena e dizer: “muito prazer, alienígena, quero cuidar de você”. Porque eles são feitos da mistura de novos elementos. Eles são a permanência da antiguidade dos povos. Os saqueadores, os flautistas com dardos venenosos, todos eles fazem a árvore genealógica de uma sub-raça oprimida.

Eu ando muito pelo centro da cidade. Sempre levo comigo um livro qualquer. Sento em qualquer banco de praça, abro o livro, fico ali vendo as pessoas passarem, as mulheres bonitas com suas roupas justas de escritório, os gordos com suas mil gravatas, olho para a cor dos lábios de cada senhora, imagino a cor do seu mamilo, e pelo tamanho dos narizes imagino os tamanhos dos clitóris, mas algo super inocente, discreto. E, ao contrário do que se pode pensar, a abrir o livro eu espero que me interrompam a leitura. Ao abrir o livro estou usando uma antena de atração humana. Abrir um livro, para um doente da atual esquizofrenia carioca por uma justiça forjada no topo de um iceberg, significa se proteger de algo que desejamos. E é assim que o carioca vive hoje. Ele se protege daquilo que deseja, que é a balbúrdia e os carros parados nas ruas, que é o churrasco de calçada e o samba alto, que é o cumprimentar estranhos como amigos íntimos e a relação íntima entre paz e morte. Mas eles não se aproximam de mim, os cariocas. No fundo eles sabem o que eu quero e isso é um ultraje, porque eles querem também e precisam se proteger disso. Precisamos catequizar os cariocas, dizem as corporações. E os bares cariocas são bares de paulistas que copiam bares cariocas. E vejo que as pessoas passam reto pelos artistas de calçadas, pelos velhos crusoés de enormes barbas, pelos drogados e prostituídos, por homens sem pernas e sem braços e sem comida e até por pedaços humanos dobrados por um parto difícil e uma frágil assistência médica. E nada impressiona, o governador cai no choro ao vivo na televisão e nada impressiona, nada traz à tona nenhum chavão popular, nenhum comentário besta, nada acontece. Pedra. Passamos em pedra. O governo negocia uma chacina iniciada pela implementação de um programa inviável de combate ao tráfico, inviável porque não é possível mantê-lo, tudo porque o grande tráfico inatingível não pode parar de rodar, e nem os jornais e programas de televisão, um outro típico de tráfico, este já mais enraizado. E vemos balas e mortos, mas não vemos os campos de concentração onde vivem essas pessoas. Não gostamos do gosto do chantili que fica sobre o bolo, mas o bolo é de merda, e com ele nos lambuzamos.

O carioca não pode, ele não deve se tornar um justiceiro. Não devemos levar uma vida baseada em filme de bang-bang, nos deixar alimentar por um chumbo grosso estrategicamente posicionado diante das câmeras de TV. Mas nem todos nasceram para o altruísmo, e todos são bons e maus ao mesmo tempo, o traficante ou São Francisco de Assis. O carioca deve ser como o velho crooner de boate, um dia um cantor de talento, de grande futuro, hoje um velho que ainda acredita no talento, mas já não pode alcançá-lo, mas acima de tudo ele acredita, o carioca velho crooner de boate, e ignora os maniqueísmos. Não importa a ele cantar num puteiro ou no Royal Albert Hall de Londres, ele quer se apresentar da maneira que for. Deixem a justiça para os altruístas, que assim são porque têm pouco a oferecer. O Rio de Janeiro, mesmo sem nada, depenado por uma corrupção mesozóica, por facções ilegais e legais, nasceu para a abundância e o esplendor, e só reconhece isso. Não queiram, portanto, empresas midiáticas, empurrar essa justiça cinematográfica e romana para cima desse povo sem cabeça. O Rio de Janeiro foi feito como um Cristo, para que viessem a ele os renegados e os puros, os de boa conduta moral e os cínicos, mocinhos e bandidos num intrincado e constante affair.

Agora eles querem que o Rio faça a sua escolha. De um lado da cidade, massas oprimidas se espremem às centenas de milhares sobre um milhão de metros quadrados de idade média. Mas devemos optar. Pela suplantação de uma corrupção por outra, de uma violência por outra. No dia em que tirarem de uma vez a alegria resignada do povo carioca, no dia em que o transformarem num justiceiro frio, num paulista progressista cheio de dignidade, neste dia estará talvez se erguendo, da união dos partidos políticos (maiores consumidores da pretensa ilegalidade) e das facções criminosas de Rio e São Paulo, uma grande megalópole de frieza, eficiência, força bruta e paz. Como eu aprendi ainda no colégio.

Comentários

Fernanda Arruda disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Fernanda Arruda disse…
é uma grande pena ver os cariocas se apaulistando, mesmo sendo paulista, concordo que possuimos um olhar frio e distante sobre todas as coisas...

o ponto é que de nada adianta "acabar" com o tráfico no RJ, pois ele simplesmente se realocará pra outro canto, afinal, o problema é bem mais embaixo :(

gostei do seu texto!

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