PINTO EDUCADO É AQUELE QUE LEVANTA PRA VOCÊ SENTAR >> Leonardo Marona

Nas horas difíceis da vida você deve estufar o peito, levantar a cabeça, e dizer de boca cheia: Agora fudeu!

Tinha decorado algumas frases de boléia de caminhão. Meu trabalho era estimulante, isso nos dias em que o computador quebrava e eu podia ficar lendo no escuro da sala de máquinas ou brincando com um gato preto prognata, que na verdade era uma fêmea chamada por mim de Dulce, homenagem a Dulcinéia, não a do Cervantes, mas minha buldogue com paralisia nas patas de trás. Minha pauta do dia: um perfil da Julia Roberts, só para você descobrir que ela deu pra todo mundo em Hollywood: de Kiefer Sutherland a Liam Neeson, passando por Daniel Day-Lewis e parando nos gêmeos que teve com um câmera. E a seguir, não perca no telecine pipoca, Doze é Demais, com Steve Martin, Bonnie Hunt e Hilary Duff! Que tal?

Decidi que precisava de qualquer coisa que se pudesse desfrutar calmamente sem pingar nem enlouquecer ou assar a virilha. Decidi ir ao novo cinema, Art Plex – dizem que o nome tem a ver com o fato de o cinema apresentar filmes de arte e filmes comercias –, em suma, um cinema com o aspecto de cinema de arte, mas com o público do New York City Center.

O filme foi um choque. Filme do Manoel de Oliveira, português de 96 anos. O filme é de vanguarda, feito por um sujeito de 96 anos. Todos os cineastas iniciantes que acham que têm que dar entrevistas por aí falando dos seus métodos e de como foi difícil gravar esta ou aquela cena sob o método de Grotovski, à luz de Brecht, embasamento de Tarkovski, e mais não sei quantos óvskis, deveriam ver esse filme. Sentiriam vergonha de falar depois. O ritmo que Manoel de Oliveira imprimi é o ritmo da velhice. Mas não daquele tipo de velhice que morde a própria bochecha e te dá uma sunga colorida de natal. Uma velhice interessante, sábia, sem saída, mas mesmo assim inquieta. O filme é sobre a história da humanidade, suas conquistas, impérios, ruínas, líderes e línguas. A base estrutural são as línguas, conciliadoras dos povos. Numa mesa conversam: Irene Papas em grego, Stefania Sandrelli em italiano, Catherine Deneuve em francês, John Malkovich em inglês, todos em plena harmonia, a ponto de Malkovich propor uma brincadeira que consiste em cada um falar um pouco sobre si. Diplomacia. Tudo ressoa num otimismo genuíno. O final é de fazer inveja em garoto de vinte e poucos anos que se diz ousado.

À saída, casa seria boa entrada. Dormir para sempre ou tentar terminar os textos dos Campos sobre Maiakovski. Mas depois de ter lido o próprio Maiakovski você não quer saber de nenhum campo sobre ele. O camarada é a própria enxada que voa sobre os campos arrancando nacos de fatos estimulantes. Penso numa poesia e corro ao banheiro para anotar num maldito caderninho que minha terapeuta me mandou comprar para que eu anotasse qualquer coisa que estivesse pensando e sentisse vontade de anotar nele: “Eu cavo / Tu cavas / Ele cava / Nós cavamos / Vós cavais / Eles cavam / Não é bonito / Mas é profundo / Por maior que seja o buraco em que você se encontra / Pense que por enquanto ainda não há terra em cima nem no fundo”.

No caminho até a casa, um amigo me liga. Me chama p’rum bar metido a chique que me custa as bolas dos olhos e do saco. Vou, mas antes paro num bar pé-rapado onde cadelinhas de boate com cachecóis e longas botas de couro se fazem de escória junto ao resto do povo. Uns velhos com rosas murchas na mão, barba amarela, gritando barbaridades. Uma mulher canta Lupicínio com os olhos cheios de saudade. Velha, encardida, ludibriada pelo tempo. Ou melhor, por uma trégua que ela esperava e ele nunca deu. Sigo até o balcão e peço uma dose de conhaque. O frio é suficiente, o balconista me enche um copo de plástico, e não vou dizer a vocês que o primeiro gole tenha sido fantástico. Nem o último. Encontro com uns amigos, se chamam “artistas plásticos”. Mas parecem feitos de plástico, todos com seus casaquinhos uniformes de náilon apertados com duas listras, todos falando alto sem olhar pros lados. Um grita: “sabe aquela novela... aquele viado? Ele usa uma camisa que eu fiz”. Eu penso que às vezes devíamos pegar o dinheiro e ficar calados. O outro acabou de chegar do ateliê, mesmo que mais pareça que chegou de uma casa de reabilitação para viciados. Metido num gorro, cigarro no bico, faz sucesso com as meninas que descem do morro atrás de conflito. Dou um alô, falo quase nada, sorrio, sento a pua e me mando dali. O conhaque não vai bem, obrigado...

Sigo o Lavradio, chuva pra caralho, que belo desafio, se manter em pé e acordado. Antes paro num outro bar. Preciso cagar. Olho pra dona do bar com cara de quem seria capaz de matar por quase nada. Ela apenas resmunga, não fala. Peço a ela a chave do banheiro. Primeiro ela me mata com os olhos, depois me aponta uma placa: “Banheiros para uso exclusivo dos clientes. Não insista!”. Peço uma cerveja, quente. O banheiro fica no andar de cima. O andar de cima é amplo, escuro, tem um espelho no fim da parede em formato de retângulo, um espelho engordurado que não mostra mais como vai ser o teu futuro e te dá várias opções de passado. Um lugar assombrado por velhos malandros do Catete. A privada é um desastre. Vou na cabine das mulheres. Não há como sentar na privada. É isso e ir pra casa. Subo em cima dela e mando ver de cima. Minha testa começa a gotejar, o copo de plástico com conhaque barato bem na frente da latrina. A testa pinga do inferno para o copo. Eu termino. A descarga não funciona. Alguém ali vai ter trabalho.

No andar de baixo, pago minha cerveja e vou parar na frente de um sobrado reconstruído, em volta de muitos outros detonados. Há um cartaz ali. Exposição de arte, salsa, gafieira. Aquilo parece um filme, nada a ver com a vida. Quem expõe sua arte é uma bicha careca vinda de Diamantina, que resolveu fazer uns estandartes com uns santos e uns trapos, com feijão, chapinhas, macarrão, guardanapos, latas de cerveja. E quando você souber que cada trapo daqueles é a nova arte e custa 2 mil pratas, finja nenhuma surpresa.

Bom, não há o que fazer senão entrar ou morrer. Decido fazer os dois sucessivamente, entrando. Meus amigos esperam no terceiro andar. A faixa etária é de sessenta anos. Nada mal. A melhor notícia até aqui. Mas, engraçado, estão ali muitos homens velhos sentados com os bicos grudados nos seus uísques com água Perrier. E tem alguma coisa estranha nos seus rostos, nos seus olhos frenéticos. Parecem mortos que ainda insistem em ter convulsões. Olham pros lados, suam, se uma mulher olha para eles, fingem que estão tranqüilos, olham pro outro lado... A noite toda aquilo. Eles me dão coceira. As velhas, mulheres dos velhos, entretanto, todas muito animadas no primeiro andar. Dançam, procuram ou imaginam jovens latinos com mangas de camisa puxadas até os ombros. As caras das velhas todas muito esticadas, estranhas... Sim, parecem velhas... Claro... Você olha para cada uma delas e diz, “aí está uma velha de uns sessenta e lá vai fumaça”. Mas por cima dos sessenta existe uma camada recolocada de vinte. E isso deve afetar o cérebro das velhas, que passam a se mexer como se tivessem vinte. Nenhum problema quanto a isso, logicamente. São felizes!, você pode me dizer. Só estranho porque, depois de olhar para elas uma segunda vez, você já não sabe mais de que planeta vêm. Porque elas parecem seres eternos, musas múmias da noite e do bisturi. São idades sem referência. Não se pode achar beleza ali, pois do jeito que estão parecem mais antigas que a própria beleza. São a própria realeza enclausurada pela transitoriedade. Parecem pessoas que bebem à tarde bebidas coloridas com rum, gim e tomate.

Me vejo na frente de um elevador de grade. Muitos auto-retratos de reis magros com expressões almofadadas nos rostos pálidos de traços pútridos. Bordas de ouro por todos os lados. Mármores, tapetes persa, na Inglaterra chamariam o lugar de cluttered, o que significa cheio demais de coisas de menos.

Não há o que fazer senão dançar. Fico portanto com nada a fazer. Entro no elevador de grade. Aperto o terceiro andar. Fecho a grade. As pessoas continuam passando por ali, mas poucos se olham nos olhos. Os olhos falam demais. Entregam o jogo. E o jogo é a única coisa que existe ali. Eu dentro do elevador de grade. O elevador sobe só até a metade. Estou dividido ao meio. De repente vejo dois companheiros de birita passando ali por baixo. “Ei! Sacanas! Me tirem daqui!!!”, grito acocorado. Eles riem e vão procurar uma maneira. Voltam com mais risos e um deles me traz uma esteira. Uma esteira de palha. “Deita aí que isso vai demorar”, ele diz e me alcança a esteira. Eu tento cuspir em cima dele, mas fica tudo pelo queixo. Eu rio, ele também. Mas eu não devia estar ali. Por isso estava. Lembro da história do buraco e da terra em cima. Aquilo é a terra em cima. Eu preso no elevador das madames. Eu como um pássaro da terra preso numa gaiola. E tenho a impressão de que mais gente está rindo. Mas sempre tenho essa impressão quando caio em alguma ratoeira.

Finalmente, um brutamontes de gravata borboleta chega ali com uma espécie de picareta, mangas dobradas, e me arranca dali. Ele também ri. Eu devo ter uma piada desenhada na testa. Vou ao banheiro. Estou suando. O banheiro me faz lembrar de que a entrada era cara. Olho no espelho. Malditas entradas! Passo a mão no cabelo, a cabeça raspada. Não há mais nada para se disfarçar.

Lá no terceiro andar conheço três novas meninas. Todas muito parecidas com as velhas de lá de baixo. Mas só que novas. Mas só que as novas não riem. Não sabem rir. Estão entediadas. Só falam entre si de si. Me viro pr’um camarada e escoro a boca com a palma da mão. “E essas aqui... O que fazemos com elas?”. Ele me dá de ombros e enche dois copos. Cerveja Heineken num balde de metal com gelo dentro. Esqueço do preço e me concentro na velha conhecida. Loira, gelada, olhos verdes, alemã, um pouco amarga. Exatamente o meu tipo. Pena que só se beba aquilo e não se possa comer nem tirar para dançar. Aliás, foi no salão de dança que a festa tomou um rumo interessante.

Tocava salsa. Havia uma senhora com uma mama de fora, dançando descabelada, uma das ricas que bebem à tarde sozinhas em casa. Ela segura nas mãos duas maracas. Pé na frente, pé atrás. A banda tinha um belo naipe de metais. Trompete, sax barítono, sax alto, soprano, tenor; fora um cubano alucinado na percussão, um guatemalteco tocando tambor, uma linda menina de costas pro céu tocando um jam block e um cow bell. O velho do trompete era o mais velho da banda. O manda-chuva. Quem dava os tons e mandava os solos entrarem. Uma hora era a vez do solo dele. Vi bem, eu estava bem na frente. Ele olhou pro sax alto, um garoto, e eu li nos seus lábios: “Entra você... Estou cansado”. E ficou por isso mesmo. Eu sabia que ele era cheio dos truques. Típica raposa velha manhosa dos pequenos palcos. Do nada entrou soprando sua corneta. Não pediu perdão nem licença. Atropelou a harmonia com seu sopro cheio de álcool quente. O primeiro velho de que gostei na noite. O segundo seria Andréia.

Há uma porção de velhas serpenteando no salão e se fazendo de bêbadas devassas quando estão apenas bêbadas. Passo andando no contorno do palco e esbarro em cheio numa senhora de cabelos cheios e grisalhos, óculos de lente, camisa de botão por baixo do suéter rosa de lã, muitos dentes, mais do que o normal, ou vai ver só estava contente, o que de qualquer forma é mais do que o normal. Não dá tempo para nada além de “perdão”, “não foi nada”, e sigo andando sem perdão. Mão me segura pelo braço. Braço me puxa para junto de tronco. Bons peitos. Um pouco flácidos, mas honestos. Olho pro lado e lá estão todos aqueles dentes sem espaço salivando na minha cara.

- Sim? – eu rio.

- Não – ela ri. E vira a cara.

Eu rio novamente e me viro para sair. De novo a mão no braço.

- Me dá um chiclete? – ela diz.

- Como sabe que tenho um?

- Senti o cheiro da tua boca...

- Sei...

Dou o chiclete a ela. Ela vai embora. Só queria o chiclete, penso. Ela volta e fica do meu lado. Nunca pense, penso. Ela começa a me esbarrar com as ancas. Vejo que tem muita carne ali. A salsa se entrega à rumba. Ela se vira para mim: “Acho que me perdi...”. Eu me viro para ela: “Tudo bem... Aconteceu comigo também... Há 14 anos...”. Ela está muito perto agora e desconfio que seria capaz de rir de qualquer coisa. Gosto de pessoas assim. Por dez minutos. Ainda tinha então mais uns sete minutos de Andréia. Ficamos falando da salsa, acho que arriscamos uns passos. Mas, quando o cachecol de Andréia se afundou no copo de uísque de um senhor que já dançava com as calças semi-desabotoadas, tivemos que parar. Ou melhor, eu parei. Ela continuou me dando a mão e me fazendo girar. Depois me fez um questionário interessante: Você bebe? Você é gay? Você é rico? É filho ou parente de alguém importante? Prefere sol ou montanha? Signo. Partido político, ainda tem algum? Mulher bonita. Homem bonito. Frase.

- Olha, o Reynaldo Gianecchini não veio hoje... Mas tudo bem: sim; não; talvez; não existe mais ninguém; nenhuma das anteriores; o mesmo de Mozart e James Joyce, mas e daí?; ainda existe algum?; algo que está sempre indo embora; algo que deve ser o motivo de algo estar sempre indo embora; “Merde!”, do André Derain.

Ela ri de mim. Isso é aquilo que você pensa que é um bom sinal. De fato é um sinal, mas quase nunca é bom. Descobrimos algumas afinidades. Ambos tinham morado em Camden Town, mas em décadas diferentes. Ambos tinham lavado pratos, preparado sobremesas com maçaricos e feito vista grossa para o tráfico de cocaína na cozinha do mesmo restaurante jamaicano. Ambos bebiam cerveja em jarra todas as terças numa boate de música latina chamada Guacamole Club, onde em dias de sorte podia-se ouvir mpb. Mas como poucos eram os dias de sorte, acabávamos quase sempre ouvindo lambada e pagode. Ambos tiveram sarna. Ambos não sabiam dançar em hipótese nenhuma. Ambos não estavam bêbados ali, mas se mostravam altos: daí a primeira divergência: ela tinha uma fita enrolada no pulso que significava que ela poderia terminar desmaiada no banheiro de tanto beber. Eu não tinha nenhum dinheiro, muita sede, mas uma cerveja ali era quatro e cinqüenta. Descubro que Andréia dá aula de inglês no lugar onde eu havia estudado inglês. Claro que eu não falo a ela que era apaixonado pela professora dentuça do curso de inglês, e que passava meia hora no banheiro antes da aula começar. Mas penso em tudo isso. E é bom.

Os músicos da banda estão encostados no balcão do bar destrinchando sanduíches de pernil com abacaxi, virando copos de cerveja lagger e conversando sobre a apresentação. Aquilo era a vida. Vida de verdade. Batalhar por uns trocados na noite e depois comer o próprio trabalho. Fico olhando pr’aquilo enquanto Andréia me fala qualquer coisa sobre ser amiga de um artista plástico que estava em exposição no lugar.

- Você não tá prestando atenção – de repente ela diz, grudando o chiclete que estava mastigando na ponta do meu nariz. Eu quero isso? Antes de me decidir, ela me pega pela mão.

- Olha, eu sou meio mal-humorado – digo a ela tirando o chiclete do nariz.

- Buhhhhhhhhhh! Que medo! – ela ri e arregala os olhos. – Por que não vamos lá em cima beber alguma coisa? Posso te mostrar a exposição com essa fitinha – e sacode o punho.

Coloco tudo numa balança: tinha a cerveja, a exposição de arte, quem sabe uma foda, aqueles dentes todos me olhando, toda aquela carne. Eram duas coisas sobre Andréia. Uma que você pode olhar pra ela mas nunca vai saber se ela vai te jogar bebida na cara ou te chamar pra dançar. Duas que você não consegue dizer não a ela. Mulheres assim são as herdeiras do planeta.

Pego minha mochila, que tinha escondido debaixo do palco, damos as mãos, vamos andando até o elevador de grade, ela me mostra como se usa o elevador, ri da minha cara mais uma vez quando eu digo a ela que tinha ficado preso ali, ou então é a minha cara que dá vontade de rir nas pessoas, o que me faz pensar por um segundo que eu posso ser um tipo raro no mundo.

No segundo andar, entramos por um corredor cheio de quadros de príncipes pederastas renascentistas, com bordas folheadas a ouro e perucas ridículas, uns seguranças abotoados, apesar de não ter mais ninguém ali. Então damos num salão à moda antiga: piano de calda num canto, sofás forrados com veludo, um deles estampado com pele de onça. Neste sofá sentam-se três seres humanos, aparentemente. Andréia vem na frente, me guiando. Anda rápido demais e, como minhas pernas são curtas, quase tenho que correr. Isso me fez segurar as calças por detrás e parecer um michê. Andréia me apresenta a todos. Ricardo Blanche é o/a artista plástico. Deuminha é uma espécie de chaveirinho do artista plástico: uma gordinha com cara assustada de cocaína que fica se roçando no assento do sofá de braços dados com Ricardo. Tem o rosto muito branco e redondo e os cabelos lambidos na altura do pescoço. Fala sem parar. A última a quem sou apresentado se chama Bel. Uma mulher de uns 50 anos, mas nunca se pode dizer se é uma mulher de 50 anos acabada ou uma mulher de 70 conservada. Transita por essa faixa. Tem os cabelos crespos loiro-pintados bastante volumosos, usa um conjunto de náilon preto com três listas brancas paralelas nas laterais, zíper fechado até o queixo, uns óculos retangulares de lente, sem um dente na frente.

- Oi, Leo, eu sou a Bel. Bel, Leo, Bel, Leo. Gostei de você, Leo. Bel, Leo... Saca?

De repente eu não consigo mais rir. Isso é o fim da noite de um cínico. Andréia mete o braço debaixo do meu coração e então rodamos a sala para ver as obras de arte de La Blanche. Andréia vai pontuando o passeio e dizendo, na frente de cada estandarte feito de trapos, restos e santos: “Esse aqui custa R$ 2.500... Esse é mais barato, R$ 1.750, mas também, é menor e só de jornal e feijão...”. Não falo mais nada até voltarmos ao sofá, onde estão os outros restos – dessa vez os mortais. Não se deve falar nada sobre a arte moderna. Isso é o melhor que você pode fazer por ela. Deixá-la morrer de velha, dormindo tagarela como ainda está. Não devemos despertá-la com críticas ou elegias. Corre o risco de ela acordar antes de morrer, e aí muito mais gente iria sofrer antes de morrer: ou talvez só eu e mais uns idiotas saudosistas, que se metem em quartos úmidos e escuros com livros de história da arte, biscoitos amanteigados, e uma vela que arde em meia chama.

Quando chegamos de volta, Andréia se senta, eu fico de pé. Começa uma música lá embaixo. Deuminha imediatamente se ergue, elétrica, e fica dançando na minha frente. “Ah, eu quero dançar! Vamos dançar? Eu quero dançar!”, ela repete ininterruptamente, me puxando pela manga da camisa. Deuminha era uma das poucas pessoas que, para ver, eu precisava olhar pra baixo. Nunca gostei de olhar as pessoas de cima pra baixo. Claro que isso é só falta de educação, costume e ambição. Mas ao olhar Deuminha de cima pra baixo, puxando minha manga com aquele sorriso constante, vazio, que te implora por não sabe bem o que, eu sinto vontade de puni-la, cuspir em cima dela, dar duas voltas no seu pescoço, empurrá-la de volta pro sofá. Penso em tudo isso, depois sorrio e arrisco uns passos com a Deuminha. Se as pessoas soubessem tudo que se passa por trás de um sorriso, poderiam passar mais facilmente por um domingo solitário de chuva.

Ricardo Blanche apenas me encara com as pernas bem cruzadas por dentro de um kilt escocês no sofá estampado com pele de onça. Esses caras têm saco?, eu penso. Como conseguem cruzar as pernas assim? Blanche usa umas botas bem lustradas de exército fascista, muitos colares e pulseiras indígenas, uma blusinha cinza regata de malha, nenhum cabelo na cabeça. Bel vai ao banheiro “retocar a maquiagem” e depois não a vejo mais até o fim do resto da noite. Deuminha continua de pé dançando atrás de mim. Eu seguro um casaco listrado numa mão e a mochila na outra. Deuminha toma o casaco da minha mão e o enrola na minha cintura com um nó bem apertado. Eu apenas levanto os braços e morro devagar.

- Olha! Fica ótimo assim! – grita Deuminha.

- Acho que não, Deuminha... Vê bem, o casaco listrado não combina com a camisa xadrez... Pergunte só pro Blanche ali... Ele é artista, vai te dizer...

- Querido: t-u-d-o p-o-d-e – corta a biba num tom marcial, os olhos cinzas decaídos. Sua voz é como eu imagino a voz da morte ao pé do ouvido do príncipe de Lampedusa.

Não agüentava mais aquelas caras. Aquilo parecia um quadro expressionista alemão feito por um aborígine canibal da Zâmbia. Você não podia sair de casa sem se incomodar muito. E torcia por isso. E se esforçava para que o incômodo não acontecesse. Isso deixava o dia insosso porque, como você queria que nada te incomodasse, você não fazia muita coisa. E de que adianta isso se no fim do dia você está vendo estandartes de santos feitos de trapos e restos a 2.500 pratas em espécie cada? Mesmo Andréia, que ainda tinha luz no fundo dos olhos, tinha sido sugada por toda aquela maquiagem de vida. O que chamam de arte por aí nos ciclos fechados de putaria e canapés.

Eu já não estou mais ali em mente e penso agora num jeito de não estar também em corpo sem causar grande alarde, principalmente em Deuminha, que dança com os olhos fechados e a cara enfiada no meu peito. Pra mim sempre foi muito difícil dizer não às pessoas. Simplesmente não gosto de ver aquela cara olhando pra mim como se eu fosse o culpado pelo mundo girar. E por isso sei do efeito de um não numa vida de nãos constantes, que é a vida como o outro disse uma vez que era. Não quero ser mais um não no mundo. Não vou colaborar com isso. Nem com mais nada. Então me meto nos piores tipos de cilada. Depois só resta tentar ir embora de algum jeito.

Levanto e digo que preciso ir. Ainda não paguei a conta, digo. Andréia está às gargalhadas com Deuminha, mas Blanche parece perturbado. Deve ter alguma coisa a ver com seu estilo ou com sua performance: duas palavras da moda. Um artista precisa ser um perturbado. Ele deve doer ao pensar. De qualquer forma, prefiro um artista como Blanche perturbado e frio em vez de calmo e frio. A segunda combinação resulta em genocídio. Andréia não parece dar muita atenção quando eu me levanto e digo que vou embora. Portanto eu penso que fui bem sucedido. Dou as costas e vou indo. Na porta do ateliê o segurança abotoado me pára e pede o meu nome. Todo mundo está sempre pedindo coisas, meu deus! Digo a ele “Daniel Azulay”. Ele me olha desconfiado. Eu não estou rindo. Ele pergunta “Com z ou com s?”. Antes que eu pudesse responder devidamente, Andréia surge, sempre segurando meu braço e me guiando. “Está comigo”, ela diz ao segurança. Então saímos.

- Andréia, por que diabos ele precisa do meu nome na hora de sair?

- Por causa da bicha... Ela não deixa nenhum bofe sair sem dar o nome... O segurança deve ter pensado que você era um dos bofes da bicha...

- Então ela é mesmo nazista...

- Hum?

- Nada... Olha: eu vou nessa... Procurar minha carona e achar, se der sorte.

- Você não quer vir com a gente? A gente vai ali no Nova Capela.

- Não, chega de capela por hoje... Além do mais, eu não tenho mais dinheiro. Tenho que pegar essa carona... Vou até aquele sinuca bar procurar os caras... Você não quer vir junto?

- Isso é lugar de adolescente... Não tenho mais idade.

- Bom, nesse caso, ficamos por aqui... Foi bom te conhecer, Andréia... Te cuida.

Ela não diz nada. Nem dá dois beijinhos. Se vira, claramente magoada, e volta para sua vida de restos de arte e sacanagem disfarçados de boas e velhas maneiras. Boa menina... Menina? “Isso é lugar de adolescente”, ela me disse, “não tenho mais idade”. Ao contrário, eu penso, temos cada vez mais idade para fazermos cada vez menos coisas. Sigo pela rua espelhada de chuva rala. Nenhum bueiro aberto solta fumaça. Nenhum casal aos amassos num beco escuro. Nenhuma barata se equilibra numa quina de calçada. Nenhum homem de chapéu de feltro e cara dura acende com dificuldade um último cigarro. Vejo um homem jogando uma pedra no vidro lateral de um carro. Ele entra no carro, fica um tempo, sai. Passa por mim com uma sacola. Um rádio cai de dentro da sacola na minha frente. Ele olha pra mim, recolhe o rádio do chão, e diz: “Fiel, tu não viu nada”. Depois sai correndo e some na esquina. Eu sigo andando. Nenhuma música triste toca numa juke box. Nenhuma puta de cabelos encaracolados se apaixona por mim. Nenhuma puta mais, apenas se masturbam num lado da calçada alguns travestis. O mundo está calmo, quieto, as coisas fazem sentido quando não estão de fato ali. Dentro do sinuca bar vejo vários velhos. Tomam cerveja, conhaque barato, cachaça. Discutem alto. Praguejam desconexos. Escorregam das cadeiras. Se apóiam nas paredes. Engolem caçapas com as bolsas dos olhos encardidas espatifadas no pano verde e as almas sugadas pelo vácuo do tempo. Também não têm mais idade. Também não são mais adolescentes. Também foram encontrados. Meus amigos não estão mais ali. Nenhum recado. Sinto que aqueles velhos derrotados são meus amigos. Portanto, como bom amigo, os deixo na paz da morte que se mexe e se aproxima e espero minha vez sentado no meio-fio. Mas ela não vem dessa vez. Meu ônibus chega vazio, a trocadora não tem trocado, eu pulo a roleta e a história termina aqui.


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