48 >> Carla Dias >>
O profeta afirmou que hoje o dia passará mais lentamente, como se tivesse sido atendido aquele pedido que, vez ou outra, todos fazemos: que caibam 48 horas nas 24 que temos.
Penso o que farei com as 24 horas extras oferecidas, porque não estava preparada para elas, tendo todo o meu dia organizado para cumprir a pauta da sobrevivência.
Talvez eu pare, respire, e então assopre os cabelos das oportunidades jamais desejadas, como a de correr pelas ruas da cidade só para parar no quinto quarteirão e pedir um copo de água gelada na padaria. E respirar, de novo, até que meu coração volte a bater ao compasso do sossego, o perfume de pão fresco invadindo as minhas narinas.
Posso aprender um ofício, através de algum curso relâmpago: leitura dinâmica, cerâmica, adivinhação, organização de armários, como passear com os cães da vizinha, iluminação de quadros na parede, aplicação de reticências, como construir uma cidade com Playmobil.
Ou arquitetar mudanças: a cor do esmalte, os móveis, os cabelos, o endereço de casa, o itinerário de viagem, o sonho, o ideal, a busca.
Posso escrever uma carta, tão longa, que terei de enviá-la ao destinatário em capítulos, um por semana, duração de vinte páginas cada, total de cinquenta e sete capítulos... Ou episódios, se de repente o destinatário gostar de ler pensando na cena.
A gente pede tanto por tempo extra, alegando que não há como visitar os amigos, escrever para os familiares, passear com as crianças. Porém, ficamos sem saber o que fazer quando recebemos este tempo, como quando entramos em férias e não temos dinheiro para viajar, então ficamos em casa, assistindo a Sessão da Tarde, escutando as notícias no rádio, folheando o jornal. E organizando espaços que não precisam ser organizados, relendo cartas, revisitando o passado através das fotografias.
O profeta me deixou morrendo de medo, eu confesso. O que farei com tanto tempo extra se eu nunca o tive e agora sou obrigada a preenchê-lo? Preenchê-lo com atividades diferentes das que fazem parte da minha rotina, porque não vale simplesmente ficar onde se está ou trabalhar dobrado, só para mascarar o tempo. O profeta é severo na afirmação de que este tempo extra deve ser gasto de forma diferente da qual gastamos nossas 24 horas devidas.
Posso passar 24 horas fazendo bolhas de sabão, deitada na grama, o olhar perdido no céu. E quem sabe cantarolar músicas inéditas, que ainda estão na fila da inspiração, à espera de serem colhidas pelos compositores. Que tal sentir o cheiro da chuva, e então dançar horas sendo abraçada por ela?
Posso inventar recomeços, mas com garantia de que eles jamais se tornarão moeda, que não haverá como serem vendidos, apenas conquistados.
Quem sabe, tecer languidez nas faces da timidez e, ao corar de suas bochechas, arrebanhá-la numa conquista de cheiros, toques, palavras a dizerem afeto.
carladias.com
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Comentários
"então ficamos em casa, assistindo a Sessão da Tarde" haha adorei essa parte
;)
Mas, sabe, desconfio que tempo seja como dinheiro e espaço, quanto mais você tem, mais você acha que precisa de mais.
Mas não posso aceitar as suas 24 horas extras... Você saberá cuidá-las muito bem, utilizando-as com apresso. Basta recorrer aos tíquetes de tempo.
Jacky... Obrigada pelo comentário.
Pois é... Quem já não ficou de cara com a tevê, assistindo a Sessão da Tarde?
Marilza... Você é muito gentil.
E se eu somar as suas 24 horas com as do Eduardo, terei uma dobradinha de 48 horas... Hum... Vou pensar : )
Vanessa... Obrigada!
Jaque... Fico muito feliz por saber disso. Seja sempre bem-vinda.
Fernanda... Obrigada : )
Essa mania da gente de ‘quanto mais temos, mais achamos que precisamos de mais’ é fato, mas também é fato que, se quisermos, podemos sair do círculo e apreciarmos somente o que temos, extra ou não.
Eduardo tem razão quando fala do ritmo.
Pode-se dançar o seu texto.