O CÂNCER É A POESIA DA MEDICINA >> Leonardo Marona

“Já não me importa mais se vocês vão acreditar na minha história ou não. O sanatório, é óbvio, não acreditou. E deu no que deu. Sim, eu tinha ido até lá, espontaneamente, um dia antes do que acabou acontecendo. Eles disseram: “Você está bem, vem aqui só pela comida” e, de fato, eu precisava comer. Qualquer ser humano que não come enlouquece, louco ou não. E eu não sabia mais se minha loucura era genuína ou pura fome. O que dizer? Acho que enlouqueci de fato, ou de fome.”

“E a história do alienígena?”

“Não acho que seja outra coisa. Ele era igual a mim, as câmeras filmaram tudo. Foi inacreditável. Chegou um bicho, um ser muito esquisito feito de uma substância que eu não saberia reconhecer. Mas ele falava a nossa língua. Eu estava suando frio, estava sem ter onde dormir, além de tudo, não fazia muito tempo que eu tinha andado lambendo uns ossos velhos de bicho, sobras do açougue central, e o que tinha vomitado pouco em seguida era um líquido acinzentado, ralo e viscoso, além do que eu não enxergava mais muito bem. Havia dormido dois dias seguidos ao lado da Penitenciária Modelo. Vejam bem: eu dormia ao lado da penitenciária. Um homem livre que, por espontânea vontade, se dirige à prisão, para ao lado dela descansar. É simbólico, é simbólico. Bom, ele, essa coisas estranha que falava como nós, se aproximou e me disse: “Quero a sua jaqueta”. Assim mesmo: “Quero a sua jaqueta”. Ele era tão estranho e eu me sentia tão mal, que entreguei a jaqueta. Então ele vestiu a jaqueta e empurrou o sujeito, como vocês viram, no meio dos trilhos, quando o trem passou e, enfim... a coisa toda.”

“E esse sujeito era um alienígena...”

“Só posso acreditar que sim. Ele vestiu minha jaqueta e ficou igual a mim”.

O policial olhou para o psiquiatra e fechou os olhos. Deu um murro na mesa e quebrou seu copo no chão.

“Levem este filho da puta daqui.”

Reynaldo Mafra foi retirado da sala e arrastado violentamente à cela onde ficava sozinho: uma cela limpíssima, esterilizada, reflexiva, uma ante-sala da morte. Não deixaram que ele ficasse com quase nada depois que foi preso, depois que matou Joaquim Menoti, surdo-mudo que trabalhava na lotérica e tinha uma filha que não era surda-muda e, todos diziam, era um bom sujeito, tratava bem as pessoas, falava pouco na verdade, era surdo-mudo.

Reynaldo Mafra agora usava um desses aventais para loucos, que deixam a bunda descoberta. Deixaram apenas que ele ficasse com um livro. Era um livro azul, velho, um livro manchado de sangue, com páginas arrancadas, marcado a caneta esferográfica, um livro que deveria conter uma história sinistra e simplesmente ninguém ainda tinha tido coragem de tomá-lo de Reynaldo ou mesmo perguntar o que estava escrito nele. Havia algo de repelente e muito misterioso que exalava do livro. Algo contagiante e perigoso. Algo que poderia, quem sabe, levar à loucura. E às vezes esse tipo de objeto nos leva a, sem nos darmos conta disso, ignorá-lo forçadamente, para evitar maiores danos.

***
O dia em que Joaquim Menoti foi jogado nos trilhos da linha vermelha do metrô era um dia bastante comum. Ele havia feito um lanche com a filha que, como já foi dito, não era surda-muda. Ela conversava, portanto, com seu pai, que não podia ouvir, mas sorria como um bom pai. Tomaram um submarino e Joaquim lia o jornal do Jóquei Club. Levantaram-se lentamente, Joaquim bateu o pó da jaqueta já bem gasta, a jaqueta de um homem digno, que usa as roupas até o final. Separaram-se no meio da rua, e um carro quase atropelou Joaquim, que mais uma vez sorriu, mas sua filha não.

Do outro lado da cidade, Reynaldo enlouquecia. Era um filho da classe média e não tinha o hábito de pedir na rua. Por isso, passava fome. Passava fome como um homem de posses, algo muito mais penoso que para um homem miserável. A fome por orgulho pode ser transformada em mitologia, mas somente se o sujeito tiver a grandeza de um Dostoievski. Para os miseráveis de espírito, que uma vez sentem-se perdidos numa estrada em plena curva, a fome resulta de um martírio escrupuloso, trata-se de um condenado à morte esculpindo a própria cruz. De certa forma, a fome equilibrava as coisas, e Reynaldo não era propriamente mau, era até um sujeito esperançoso, e pensava quando amarrou os sapatos que talvez, com fome, viesse a ser um homem melhor. A fome era no fim das contas a expectativa por uma nova chance. Uma nova chance de poder, de perto, compreender a dor humana. Mas depois a fome aumentou. E Joaquim enlouqueceu.

Calçou os sapatos, sentou novamente, abriu O Livro. Lia com mãos trêmulas, morria de azia. Volta e meia arrancava uma página, enfiava na boca, começava a mastigar. Iludia-se pensando que, fazendo a movimento da mastigação, enganaria o estômago, conseguiria uma sobrevida. Muitas vezes, já tonto, perto de perder os sentidos, achava uma sombra, jogava-se à própria sorte no chão, e nessas horas, comparativamente mansas, se perdia em recordações adolescentes. Havia um tempo em que talvez tenha sido feliz. Feliz assim, como nas propagandas de manteiga. Por exemplo, havia ainda uma garota. No fim é sempre a mesma garota. E, se não temos ou perdemos a garota, então ela se torna um “havia uma garota”. E Reynaldo era um cara de quem se diria: “Muito bem, um pouco enlouquecido, mas um bom sujeito, um cara legal”. No entanto, espanto, estes são os sujeitos que empurram surdos-mudos nos trilhos do metrô. Por quê? Porque amam demais, porque não conhecem o amor tranqüilo.

No geral andava pelas ruas, com o estômago roendo, conversando com os próprios pés, seguindo as pessoas, não por alguma perversidade, mas para poder, observando as pessoas nas ruas, imaginar uma vida para elas e, com isso, não se esquecer de que, apesar da miséria, tinha uma também. Andava pensando muito nessa antiga garota, essa que o deixou ou nem mesmo soube que ele existia. Reynaldo Mafra e Joaquim Menoti são daqueles casos que se completam. Um surdo-mudo, com uma filha amorosa, lembre-se bem, direita dos sentidos, e talvez uma esposa que, muito bem, tinha lá seus casos de amor comum, digamos, com cinco sentidos, mas prezava, principalmente, a força de espírito e a firmeza do marido. Enquanto o outro, sem piedade, era um confesso inconformado, equivocado esclarecido, com feridas nos braços e um amor infinito que ninguém quer receber.

Se deparou pela primeira vez com O Livro quando foi preso pela segunda vez, por ter passado mal na rua, na rua errada, na rua onde não se pode passar mal. Passou mal, estava mal arrumado, passava fome antes de passar mal, foi levado preso e ali, preso, achou O Livro, e o que disse na época a si próprio foi: “Bom, é um livro manchado de sangue, é vergonhoso roubar este livro, mostra uma tendência psicótica, pois vou roubá-lo”. E assim, ao ser liberado, saiu com O Livro sob a blusa pensando: “Roubando este livro eu posso cuidar para jamais lê-lo”.

Mas todas as pessoas são vergonhosas, e rompem as suas promessas. Melhor: prometem só aquilo que podem romper. Ou seja, a promessa, a esse tipo de pessoa com a flor entre os dentes, serve apenas para dar solenidade a uma contravenção. E, normalmente, estas são as pessoas que prometem coisas a si próprias.

Mas agora, com O Livro nas mãos, Reynaldo se encaminhava ao subterrâneo. Era um sujeito bonito, de quem se diria: “Tanto potencial, poderia, não sei, poderia trabalhar com arte”. Mas, bom, quem é que janta arte?

O outro também se encaminhava para o mesmo lugar, sem dois sentidos, com o coração preenchido por uma justificada confabulação burgo-decadente. Pensava muitas vezes, enquanto assobiava pelas ruas, porque diabos tinha ficado assim, completamente cego, de repente. Havia, logicamente, algumas coisas ainda inexplicáveis, mesmo para a medicina mais avançada. E por que miséria haveria de ser ele, Joaquim Menoti, com um nome desses de tiozinho do neo-realismo italiano, um destes miseráveis casos? Teriam sido as torturas que aplicou no seu vizinho negro, quando era um jovem fascista? Teria sido o gato que matou amarrando pelo rabo a uma corda e jogando pela janela? Alguma coisa havia de ser. Que dizia respeito a ele, e a mais ninguém. A filha não era motivo, tratava a pobrezinha bem, era sorridente ao lado dela, tanto que ela nem mesmo era surda ou muda, mas teria tratado bem a mãe dela? De repente teve um branco, não se lembrava de quase nada. E outra vez quase um carro o atropelou.

Reynaldo andava feito um sans-culottes, com O Livro na mão, o famoso livro azul que lhe mudara tantas coisas na cabeça, tão subitamente, e pensando nisso, Reynaldo se lembrou que tinha fome, que estava talvez enlouquecido de fome. Se jogou na grama, debaixo de um viaduto. Abriu O Livro, olhou para as letras. Comeu duas páginas. Era curioso que, com a fome que estava, Reynaldo não pensava num belo leitão à pururuca ou até mesmo em coisas mais sofisticadas, caras, permitidas somente aos delírios milionários. Pensava, justamente, em coisas opostas a qualquer tipo de banquete regado a caldas carameladas e frutas da estação, eram restos de lixo o que vinha a sua cabeça, restos de lixo compartilhados com fétidos animais, eram migalhas de pão com os pombos, e restos de pombos com os gatos e restos de gatos com miseráveis humanos, e restos humanos por fim. Era um sonho tenebroso o sonho da fome. As unhas imundas, lambidas em busca de um pouco de sal. Mas ele tinha uma caneta, e um passado de perspectivas literárias. Abriu o livro aleatoriamente e começou a escrever, repetidas vezes, formando uma borda retangular em volta do texto: “O câncer é a poesia da medicina”. Fechou o livro com força e deu uma risadinha ensandecida e muito aguda, depois voltou a chupar os dedos, procurando o sal das unhas sujas. Dormiu um pouco, pela última vez pensou nela, a ruiva dos tempos rosados, e não sabia realmente o que tinha afastado os dois, e este esquecimento lhe feria mais do que a própria necessidade de comer. Sua emoção rememorada era um bem definido pelo seu caráter, a fome derrubaria qualquer um da mesma forma. Despertou suando muito, os olhos arregalados, mas exalando uma tranqüilidade tumular. Ainda assim, como um Cristo blasfemado, Reynaldo se ergueu pela última vez como um sujeito livre, um sujeito livre e faminto, portanto um sujeito preso à liberdade da fome, e seguiu em direção ao subterrâneo.

***

“Você ainda confirma a história do alienígena?”

“Eu não sei, eu via coisas estranhas, a gente chama coisas estranhas assim: de alienígenas. E o que você pensa que é a fome? Você não faz idéia, ela é um alienígena para você. E, para mim, eu não acreditava que ela pudesse me atingir, eu era como você. Ela me atingiu e eu nem mesmo me dei conta. E quando eu vi, estava aquela coisa, aquela coisa que podemos chamar de alienígena da fome, pedindo a minha jaqueta, e empurrando o homem”.

“E por que você se permitiu ficar tão faminto?”

“Eu não sou um pedinte. Recebia as coisas sempre como algo que não me dizia respeito. Aceitava e consumia objetos no vazio. Logo eu não sabia respeitar as coisas, a ponto de pedir por elas. Mesmo faminto, eu não reconhecia essa relação, não saberia me comportar dentro da falta de algo de que eu nunca me dei conta”.

“Reynaldo, você empurrou um homem sobre os trilhos do metrô e o matou atropelado por um trem”.

***

Joaquim sabia que algo não ia bem. Ele reparou que quase tinha sido atropelado duas vezes, e da primeira vez disfarçou por causa da filha, para não impressioná-la mal. Mas agora, depois da segunda vez, teve um calafrio violento e uma pressão baixa o levou ao meio-fio. Ficou lá sentado, se restabelecendo, e tentando se lembrar do que poderia ter feito para ser punido com a perda repentina dos sentidos. De algum modo, esperava ser punido. Tinha certeza de que a mesma coisa que o deixou surdo-mudo nunca poderia largar da sua cola. Estaria ali quando ele estivesse tomando sorvete com a filha. Estaria ali quando por alguma bebedeira contratasse uma prostituta. Estaria ali quando ele adormecesse na missa de domingo. Estaria ali, ao lado, sorrindo, com um chapéu de feltro e um charuto, virando a esquina, acenando com o chapéu num meio-sorriso cretino. E agora, ele sabia, isso ou o que quer que fosse estava sentado no seu colo, pendurado no seu pescoço, o trazendo ao meio-fio com seu peso fulminante.

Quando se levantou para seguir, sentiu-se amarrado a uma algema, a um destino fatal, a mesma sensação do piloto minutos antes da corrida que o matará. Ou do astro do rock subindo as escadas do avião fretado que se explodirá contra as Montanhas Rochosas. Mas, como todos esses desgraçados, era preciso seguir, a roda da vida não pode esperar o nosso espanto. De modo que Menoti tentava, arrastando-se como um cego, um cego-surdo-mudo portanto, em direção ao metrô, pensar nas coisas que poderiam ser motivo de um destino tão miserável, como forma de atrasar o que não podia mais ser evitado. Muitas vezes conversamos horas com quem sabemos que vai nos matar. Muitas vezes, inclusive, nos relacionamos longamente com o que vai nos matar, como no caso dos amores e dos vícios. É uma atitude limítrofe entre o desespero e a auto-punição. E na cabeça de Menoti havia prostitutas mal-tratadas e até, não poderia se esquecer, queimadas por guimbas de cigarro, amarradas e sodomizadas á força. Lembrou de como não conseguiu disfarçar a náusea ao ver pela primeira vez a filha recém-nascida e como correu pelo corredor do hospital até vomitar pela janela da escada de incêndio. E lembrou, acima de tudo, que sua mulher soube disso pela irmã, que tinha visto a cena sem entender. E que ele mesmo soube que a mulher soube, e nunca falaram no assunto. E a filha cresceu e, para puni-lo ainda mais, não era surda-muda. Ela não daria a ele o gosto de ser responsável pela sua destruição. Em suma: mesmo a náusea traumatizante de um pai que nega uma filha recém-nascida não seria capaz de tirar dela uma chance de futuro melhor que a dele. Então pensou na lotérica, nos recentes roubos de caixa. E pensou em como tinha se tornado um bandidinho escroque, aproveitando-se do fato de ser debilitado fisicamente. E de como se esfregava nas mulheres nas conduções, e elas não faziam nada porque ele não era capaz de falar ou escutar, porque alguém na condução havia atentado para este fato. E de como sorria sem ter pelo que sorrir. A vida toda. Então entrou no metrô como quem espera um raio. O resto era uma questão de minutos.

***
“Queria que você compreendesse que se fazendo de maluco você não vai deixar de ser enforcado, nem que te enforque eu mesmo. Portanto, eu não me importo nem um pouco em te dar mais mil choques no cu e arrancar suas unhas e deixar você numa salinha sem comida levando duchas de água fria a cada meia hora. Eu não acredito em você. E eu não quero falar com você. Mas vou falar com você. E você vai me dizer por que empurrou aquele sujeito no trilho do trem. Porque eu preciso dizer alguma coisa aos jornais, que agora só falam nesse assunto e na hipótese patética de você ter sido abduzido por um alienígena, o que denigre a corporação e é inaceitável. E, já disse, a mim pouco importa te cortar em pedaços ou deixar você morrer de frio, ou enforcado no próprio cinto. O que eu quero é saber a história real, porque essa imagem está rodando o mundo e, quer saber, dois garotos se mataram semana passada, da mesma forma, se jogaram nos trilhos, e sabe o que acharam na mochilas deles? Recortes de reportagens sobre você nos jornais. Então eu quero você morto, mas não quero você um ídolo. Só que morto você vai virar um ídolo e, veja só que coisa, temos aqui um dilema: manter você vivo como um parasita, mas com a verdade esclarecida, de modo que idiotas não possam se respaldar na sua doença mental; ou então podemos matá-lo, acabando com o caso, mas correr o risco de você virar uma espécie de mártir da sociedade asfixiada”.

“Eu já sou um mártir. Você sabe disso. Estou morto e vivo para sempre. Por isso você não pode me matar. Eu vou estar aqui, nos olhos de cada um dos seus prisioneiros. Eu vou estar nas ruas quando duas pessoas se esbarrarem e uma sacar a arma. Ali onde houver um garoto sem amigos num quarto fétido, eu estarei com um meio-sorriso cretino, meu chapéu de feltro, charuto na boca, virando a esquina”.

***

Menoti seguiu pela curva que levava até a zona de embarque olhando freneticamente por todos os lados, como um viciado em benzedrina. Qualquer um que pudesse prestar atenção àquele reles caixa de lotérica surdo-mudo poderia ver claramente alguém culpado por algum crime, alguém pedindo por uma cruz. Mas poucas pessoas prestam atenção às outras nas ruas, e o que se dirá de um surdo-mudo, caixa de lotérica?

Quando chegou na roleta olhou para trás, o tempo desacelerou por um instante. Havia uma engrenagem que estava à parte das nossas emoções e desejos mais profundos. E de alguma forma todos podiam saber quando se aproximava a parte de cada um desse óleo essencial que mantém os acontecimentos todos enigmaticamente associados. Joaquim Menoti, apesar de ser um ladrãozinho de caixa de lotérica pervertido e nauseado, era um homem melhor que a média. Reynaldo Mafra era um pobre coitado, com um bom coração despedaçado no peito, e nada mais melancólico e frustrante do que um bom coração despedaçado. Era um homem que não suportava mais, mas sabia o segredo. Ele havia lido O Livro, havia escrito no papel: “o câncer é a poesia da medicina”. A medicina era a vida. O câncer era a morte repentina. A poesia era a coisa rara. Ninguém soube, mas Joaquim Menoti sentiu um tremendo calafrio quando viu, passando pela roleta, olhando para trás como um fugitivo sem pernas, Reynaldo Mafra sem chapéu de feltro, sem charuto, aparecendo no fim da curva.


http://www.omarona.blogspot.com/

Comentários

Jaque disse…
No mínimo...genial!
PS:assim como o blog!

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