VIDA FEITA DE CASAS >> Eduardo Loureiro Jr.

Essa semana, deixei mais uma casa para trás. Foi a décima terceira em 39 anos de vida, uma casa a cada três anos, e descobri que uma vida pode ser contada por meio das casas em que se mora.

Minha primeira casa, em Fortaleza, tinha um pátio interno e um piso quadriculado, feito um tabuleiro. Talvez tenha sido a melhor das minhas casas, embora toda a memória que eu tenha dela venha de algumas fotos tiradas logo após o meu nascimento e no meu primeiro aniversário. Eu morava com minha mãe e meus tios e tias; meu pai estava concluindo a faculdade na Paraíba.

Quando minha primeira irmã nasceu, pouco menos de dois anos depois de mim, nós já morávamos em outra casa. Dela só há duas ou três fotos. E parece uma casa pequena. Deve ter sido uma época de limitação para mim: menos espaço e uma pessoa a mais para dividir a atenção de meus pais. A principal imagem que tenho dessa casa é um tanto irreal, e não é da casa em si. Lembro de passear, nos braços de meu pai, ao redor de um quartel que havia nas proximidades. Mas minha memória, e isso é que é irreal nela, não é da criança, mas de alguém sobrevoando a cena, como se meu espírito voasse enquanto eu era carregado por meu pai.

Só lembro de estar andando na terceira e na quarta casas. Eram casas vizinhas. Chegamos em uma e, pouco depois, mudamos para a outra. Eram casas iguais, penso até que conjugadas, como se fossem dois lados de um espelho. A foto que tenho foi tirada na parte da frente, numa calçadinha, eu abraçado com meu cachorro Black, numa época em que eu ainda não tinha alergia a pêlos de animais. Essa foi a casa mais marcante de todas, minhas primeiras lembranças de praticamente tudo vieram de lá. Foi a primeira casa de minha família: pai, mãe, eu, irmã; só nós. Foi a casa do primeiro carro: um fusca caramelizado. Foi a casa dos primeiros amigos de rua: suco com recipiente plástico no formato da fruta, guerra de mamonas, partidas de ludo. Foi a casa da primeira televisão, do primeiro filme memorável ("O velho e o mar", na Sessão da Tarde), da primeira copa (a partida vendida do Peru para a Argentina e o golaço de Nelinho contra a Itália). Foi a casa das primeiras brincadeiras sexuais com... (deixa pra lá). :) Foi a casa do primeiro macarrão, que lembro comer direto do escorredor. Foi também, e principalmente, a casa do primeiro grande medo: um possível conflito com os colegas de rua, que eu bloqueei completamente da memória, me fazia ter pesadelos frequentes e repetidos de perseguição.

A quinta casa representou um alívio em relação aos pesadelos e aos colegas de rua. Era uma casa grande, afastada do centro da cidade, em frente a uma espécie de vacaria, vizinha a uma pequena favela. Era uma casa grande, eu tinha um quarto só meu, que eu só dividia com um primo que vinha brincar comigo nos finais de semana. A casa tinha uma piscina estreita e comprida, de uns 12m². No final de tarde, eu saía à rua e jogava futebol com os netos da dona de uma mercearia. Algumas vezes, eu tinha que ajudá-los a terminar varandas de rede que a sua avó fazia para complementar a renda. Ali eu briguei (de murro) pela primeira e única vez na minha vida, e ainda lembro da sensação boa de vitória (ou teria sido um empate?) enquanto tomava meu banho e me livrava da terra. Naquele mesmo banheiro, eu me masturbei pela primeira vez, quase sem querer, sem saber o que estava fazendo. Foi a casa em que fiquei mais tempo, por volta de sete anos, e foi a casa em que nasceu minha segunda irmã, a criança mais bonita que já vi.

Por volta dos 14 ou 15 anos, voltamos para mais perto do centro. Mais uma casa grande, onde aconteceram algumas coisas (descobri a MPB, comecei a tocar violão) e quase aconteceram outras: meu quase primeiro namoro. Foi a minha primeira casa ponto-de-passagem: entre colégio, aulas de ingês e grupo de jovens, eu passava menos tempo em casa. Era para essa casa que eu voltava a pé, de madrugada, após perder o último ônibus que passava próximo à casa da minha primeira mais importante namorada.

No ano de meu pré-vestibular, fomos para a casa em que meus pais moram ainda hoje: um apartamento na verdade. Embora menor que as últimas casas, eu amei a experiência do apartamento. Morei ali durante toda a época de faculdade, quando descobri uma outra casa que não era a casa de meu pais: o pátio interno da universidade. Uma casa para o dia, outra casa para a noite. Naquelas duas casas, eu fui aos extremos: tive minha primeira depressão consciente e vivi o dia mais feliz de minha vida até então. Naquelas casas foi que comecei a escrever realmente, em que comecei a compor realmente. Foi ali que conheci boa parte de meus melhores amigos e foi ali que conheci minha primeira mulher.

Minha primeira casa de casado era um apartamento pequeno mas bastante aconchegante (tirando a barulheira que um clube vizinho fazia aos domingos). Ficamos lá apenas um ano, mas foi um ano de uma simplicidade espetacular: primeiro fanzine, primeiro livro, primeiro computador. Sei que houve momentos difíceis naquele apartamento, mas quase que não dá para lembrar. Eu numa rede azul à beira da janela, minha mulher sentada num sofá estranho e confortável. Muita música, muita música.

Deu até pena mudar, já no ano seguinte, para a próxima casa, próximo apartamento, que era enorme. Mas lá também havia o mais importante, que era a convivência com minha mulher, os projetos, os amigos e uma surpresa: o nascimento da sobrinha de minha mulher, que conviveu muito com a gente, e que tenho em meu coração como uma filha. Ainda hoje eu poderia estar morando ali, e ainda hoje eu seria feliz, mas aconteceu de eu querer me separar pelo poder de uma paixão.

Foram oito meses em que morei em quatro lugares diferentes: a casa de minha avó (que sempre foi minha casa sem ser minha casa), uma pousada próximo ao mar (que é meu projeto de casa definitiva), a casa de praia da família (que é a varanda da minha casa eterna) e o apartamento em que fui morar com minha paixão, minha princesa encantada. Aquele foi o momento da minha vida em que as coisas mais se misturaram. Eu estava destruindo minha vida ao mesmo tempo em que realizava um sonho. Aquele tempo daquelas quatro casas consecutivas são para mim uma referência quando preciso tomar algumas decisões na vida: aquele tempo me fornece o parâmetro do valor de um sonho realizado e da importância da constituição de uma família. Ao final daqueles oito meses, voltei para minha mulher e para minha casa. No meu coração, para sempre. Mas no coração da minha mulher, quatro anos depois, bateu a separação e aquela já não era mais a minha casa. Foi então que eu senti que a casa da gente é o corpo da pessoa que a gente ama.

Depois de alguns meses na casa de meus pais e na casa de praia, a cidade não comportava mais minha dor e aceitei um convite para trabalhar e morar em outro lugar: Teresina. Enquanto procurava apartamento, fiquei na casa de uma prima-tia. Uma casa que me matou um pouco a curiosidade do que deve nos acontecer após a nossa morte. Cheguei lá morto após a separação, e fui cuidado por um bando de anjos que aliviou as feridas de minha alma. Consegui um belo apartamento, que dividi com o primo que me acompanhava nos finais de semana da infância — até que ele casou e fiquei novamente sozinho. Naquela casa, eu nasci de novo aos 35 anos. Foram dois anos e meio do que eu só posso chamar de paraíso: trabalho, amigos, amores, caminhadas, escritos, canções.

A gente sabe que amadureceu quando faz não apenas o que nos dá retorno imediato. Com um grande aperto no coração, eu aceitei o convite de um amigo, dos tempos do pátio interno, para me mudar para Brasília. De um lado, eu me sentia como uma criança naquele programa do Sílvio Santos. "Você troca o calorzinho de Teresina, um trabalho com horário flexível, um apartamento espaçoso, uma rotina perfeita, amores e canções pela secura de Brasília, um trabalho de dois expedientes no ministério, divindindo um apartamento de dois quartos, sem tempo nem espaço para fazer o que você quer?", "SIIIIIIM!" Mas, por outro lado, eu me sentia adulto pela primeira vez, tomando uma decisão que eu sabia que era a melhor, embora não parecesse assim a princípio.

Na nova casa, em Brasília, revisei minhas lições de repartir, de viver na limitação, de ter a casa do tamanho de um quarto. E seria injusto dizer que, ali, fui qualquer coisa menos do que feliz, principalmente depois que pedi demissão do ministério. Ali descobri que minha casa pode ser em qualquer lugar do mundo (em Firenze, por que não?), porque minha casa é onde estou, onde descanso em paz, onde estou à vontade. E foi dessa casa que saí esses dias, foi à sua porta que repeti um ritual que realizo desde a minha oitava casa: a mão na maçaneta da porta principal, o corpo imóvel, os olhos levemente umedecidos, o pensamento em prece, a boca sussurrando "obrigado, obrigado".

E cá estou eu, escrevendo de minha nova casa, que pode não ser a última casa física, mas que desejo que seja a última casa emocional. Que, com minha mulher e sua filha, eu possa estar sempre em casa, que possamos realizar os sonhos e constituir a família ao mesmo tempo. Que o espaço e o tempo nos sejam amplos, que encontremos casa no corpo um do outro, que percebamos que nossa casa verdadeira está em cada um de nós e que murmuremos todos os dias palavras de agradecimento.


Comentários

Ana Campanha disse…
"Foi então que eu senti que a casa da gente é o corpo da pessoa que a gente ama."

"A gente sabe que amadureceu quando faz não apenas o que nos dá retorno imediato."

Bonito demais! Sem mais comentários.
Tia Monca disse…
"... porque minha casa é onde estou, onde descanso em paz, onde estou à vontade."

Acho que entendi agora o significado da casa edificada sobre a rocha, que minha mãe tanto falava quando éramos criança :o)

Felicidades na nova casa!
Bj,
Tia Monca
albir disse…
Edu,
Só não se atreva a sair do endereço crondia.blogspot.com
Abraço.
Meninas, dessa vez não há muito o que acrescentar. Grato por passearem comigo pelas minhas casas. :)

Albir, "daqui não saio, daqui ninguém me tira. Onde é que eu vou morar?". :)
Chef disse…
Uma dessas eu conheci. Espero poder conhecer outras daqui pra frente. :)

Obrigado, meu amigo, pela viagem no tempo. Passei alguns minutos pensando nas minhas ex. Casas e namoradas.

Grande abraço!
Fabio Barros disse…
Rapaz, deixe de pirangagem e compre logo uma mansão com o dinheiro que você ganhou na megasena no final do ano passado. Que bicho murrinha! :P

Agora falando sério: felicidades na nova casa, com a nova familia! Mudar de vez em quando é ótimo! E esse é o seu caso!
Meu amigo, a casa que você conhece é a casa íntima dos meus pensamentos e sentimentos, né? :)

Fábio, rapaz, mansão dá muito trabalho. :) Think small, man! :) Grato pelas felicitações.
Carla Dias disse…
Eduardo... Sua nova casa é a soma do que há de melhor nas anteriores. Que bons ventos passem por aí, amplificando a sua capacidade de viver a vida do talho à emenda. Das metades ao inteiro.Que a sua família seja sua rede e que você descanse nela, sempre voltado ao que de melhor a alma da gente pode cultivar.

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