COLHEITA >> Carla Dias >>


De todas as decisões que tomou, trocaria duas ou três por permanecer calado. De resto, não se importaria de passar outros perrengues, por conta das escolhas feitas, das brigas compradas, das tiranias das quais teve de se defender. Pessoa feito ele não vive de estabilidade, tampouco se entrega ao possível, apenas porque a outra opção aponta para o improvável.

Já gastou sola na estrada da vida, o que o ensinou que as pessoas sentem diferente. Esse tipo de aprendizado leva tempo para maturar. Ele levou mais tempo do que um ser menos curioso levaria, porque seguiu parando nas encostas para apreciar os efeitos da compreensão, que nem sempre eram pacíficos e traziam alívio.

Não se acha especial, gosta de deixar isso bem claro. Enquanto deixa isso bem claro, deseja ser especial, um dia. E que seja mais simples do que o apego que muitos têm pelo dramático. Não precisa de grande produção, mas é necessário o envolvimento de doses de café nesse enredo, assim como de afeto que não o force a ser quem jamais seria. Porque ele não se arrepende de muitas coisas, não, nem sabe compor diálogo em que se veja obrigado a entregar a estranhos o que a poucos íntimos entregaria.

Treinou declamar a incoerência do desejo retraído, alfinetando de luxúria econômica a sua realidade de sons e acontecimentos. Calou-se, em nome de um grito reprimido.

Toma cuidado para não parar em alguma sala de estar, rodeado por ninguém, tendo de escutar os próprios pensamentos. Já se pegou conversando consigo mesmo, como se encontrasse um estrangeiro morando no sótão da sua casa. Contanto que haja barulhos de fora a lhe completarem o dentro: vozes, tilintares de copos, roçadura de peles, ele se distrairá e não reconhecerá a presença da falta. Ainda que ela pulse ao ritmo da sua respiração e invoque fantasmas, apenas para provar que ela é mais forte e não se rende, nunca.

A vida o ensinou a ser diferente, o que não toma para si como castigo. É de apreciar imprevistos que o façam lucrar em conhecimento. Coleciona apreciação pelas viagens e pelas histórias que se deitam em suas fronteiras. 

Na verdade, de todas as decisões que já tomou, trocaria duas ou três por verbalizar o improvável. Sente curiosidade por escutar a própria voz a reverberá-lo, e medo, dos ferrenhos, de aonde fazê-lo o levaria.

Acredita que aqui se faz e aqui se paga. Que a colheita é, de fato, o que mais se assemelha à justiça. Colhe suas dores e mágoas como quem recebe o que poucos merecem. Mas é verdade... Espera ser especial para alguém, um dia. Para si, quem sabe?

Imagem: Sleepers I © George Tooker

Comentários

Albir disse…
Que beleza, Carla!
Colher-se para ser especial.
Carla Dias disse…
Obrigada, Albir! Abraço.

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