MANIFESTO SOBRE INQUIETAÇÕES >> Carla Dias >>


Eu não durmo sem verificar se os chinelos não estão virados. Disseram-me que, se deixá-los assim, a mãe morre. E olha que acreditei nisso e tanto, que, mesmo depois de adulta, e consciente de que todas as mães estão a salvo do viramento de chinelos, continuo a desvirá-los, e não somente os meus. Não posso ver chinelos virados que vou logo salvando a vida de mães alheias.

Também não deixo prato sobre a mesa ou pia virar a noite com comida dentro. Pelo que me lembro, assim, de um jeito um tanto desbotado, se deixarmos comida no prato, durante a noite, um anjo vem e come tudo. Por mais que a ideia de um anjo seja sedutora – falo do fofo, asinhas branquinhas, bochechas rosadas – prefiro não correr o risco de levar susto ao perceber que tem gente em casa, além de mim.

Não leio livro de terror à noite. Apesar de gostar muito de Stephen King, só leio os livros dele enquanto é dia. “Saco de ossos” me fez acordar, durante um bom tempo, às seis da manhã, só para ter uma horinha de leitura, antes de me preparar para o trabalho. Até me esforcei para lê-lo à noite, mas não funcionou. Era folhear o livro e ter uma péssima noite de sono.

Procuro não assistir a filmes de terror à noite. E se o faço, deixo as luzes da casa acesa... de toda a casa, exceto do cômodo onde está a tevê ou o computador. Dependendo do enredo, acabo dormindo com a luz do quarto acesa, durante a noite em questão, e com a cabeça coberta.

Quando era pequena, achava que o Saci morava no meu quintal. Havia dias em que não saía de casa, porque tinha certeza de que ele me encurralaria com seu sorriso matreiro. Meu medo era gostar da ideia de fazer travessuras na companhia dele, e de, assim, ter de me mudar para a mata. Só que eu gostava da minha casa, da minha cama, da minha família. Então, em dias que o sentia por perto, escondia-me dele. Era assim que acabava debaixo da mesa da cozinha ou num canto do quarto, dentro de uma tenda feita com lençol.

Princesas nunca me convenceram. Não me lembro de ter desejado me tornar uma. Talvez porque as roupas delas não se agradassem do meu corpo, ou a ideia de depender totalmente de outra pessoa, para ser salva, não agradasse a mim. Sobre finais felizes, meu espírito era nada esportivo, e assim ele segue, porque quem realmente deseja ser feliz só no final da história?

Durantes me interessam.

Não dormia com os pés para fora do cobertor, porque tinha medo de que algum espírito, que não tivesse mais o que fazer, passasse pelo meu quarto e os puxasse. Obviamente, tive de me esforçar para fazer concessões, porque o aquecimento global, às vezes, pede um pé para fora do cobertor, do lençol, da cama...

O mar me mete medo que só vendo. E vendo, observando o mar, eu o admiro como quem é das águas. Como quem teme, mas mergulha. Só que não literalmente, que não sei nadar. Neste caso, a minha alma mergulha sozinha.

Mergulhos também me interessam.

Imagem © Ernest Laurent


Este texto faz parte do projeto "Crônica de um ontem" e foi publicado originalmente no Crônica do Dia, em 24 de julho de  2013.

Comentários

branco disse…
existem autores que valem a pena você ler. no seu caso, a parada é obrigatória.
Talita disse…
Muito obrigada.Amei o texto e viajei nas minhas inquietações Bjs
Carla Dias disse…
Branco, Branco... Nem sei mais como lhe agradecer pela leitura, pelo mergulho nos meus textos. O "obrigada" vai além. Beijo.

Talita, que bom que apareceu por aqui. Obrigada pela leitura. Abraço!
Zoraya Cesar disse…
"Durantes me interessam." Mais um clássico by Carla Dias...
Albir disse…
Seus textos são como o mar. Inquietam, mas a gente mergulha de novo e de novo. E eles nunca são os mesmos.
Carla Dias disse…
Ah, Zoraya... :)

Obrigada, Albir!

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