NEVE NEGRA - Parte 2>>> Nádia Coldebella


Segunda parte:
A sombra da Rainha Morta


Quando o rei voltou  com a feiticeira, encontrou a rainha morta na cama, com a criança em seu peito. Escuridão, sangue e frio, ela dissera - palavras que Madorno grasnara em frente ao espelho.
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O rei parou de se mover. As palavras do anão ecoavam em seu peito oco. Tentou fazer um grito desesperado subir pela garganta, mas na verdade não queria gritar. Parecia flutuar em uma banheira de água morna, desprendido de qualquer contato com o solo e de qualquer sentimento.

- Morrer é assim? - perguntou-se. Sua visão agora estava embaçada e uma névoa cinza fechou-se ao seu redor, delineando parcamente uma paisagem monocromática. Uma silhueta começou a tomar forma. Logo ele viu a si próprio e os acontecimentos das últimas semanas desenrolaram-se a sua frente. Não sabemos se ela sobreviverá, disseram os médicos - e ele saíra em busca de Angèlle, coração descompassado no peito.

- Angèlle... - quando a encontrara, ele tomara a feiticeira nos braços, mergulhando o rosto em seus seios, as mãos em suas fendas e seus pensamentos em todas as curvas daquela estranha e sedutora mulher. Ela não lhe resistia. O rei era como vinho para ela que, ébria, sentia a vida pulsar.

Os amantes se desfizeram como vapor no ar e ele confrontou a si mesmo, sem poder negar o que fizera. Viu então sua própria imagem, olhos mergulhados em dor, braços levantados, punhal empunhado para abrir o peito e arrancar um coração empedernido. Porém, antes que o golpe fosse desferido, outra silhueta surge na névoa densa e segura-lhe o braço:

- Elora! - O rosto da rainha surge nítido diante do seu e, repentinamente, a visão desaparece. Uma onda de eletricidade percorre seu corpo e ele é atirado ao chão, aos pés da cama da defunta. O bebê está lá, ainda sugando o seio da morta, esposa amada e seca, tal qual a erva do campo que fenece na longa estiagem.

Angèlle prescrutou intensamente o rei e ele teve a impressão de que ela também estivera na névoa. Ele abaixou a cabeça, contraiu os olhos e sentiu o tórax apertar-se. Uma dor lancinante socava seu estômago. Ele arqueou-se e o vômito saiu, tomando o lugar do grito contido na garganta.

A feiticeira ignorou a fraqueza do rei e andou lentamente até a cama da rainha. Retirou a criança de seu seio e, com uma certa cerimônia, a depositou nos braços do pai. Primeiro ele se recusou, mas todo pai quer um filho que seja mais perfeito do que si mesmo e diante dele estava a mais bela criança da qual já se houve notícias.

O bebê abriu os olhinhos e seus olhos eram como esmeraldas em brasa que aqueceram o coração do homem. O coração bateu no peito. Emocionado, ele abraçou a menininha e ela aninhou-se e, por alguns segundos, ele encontrou o sentido de sua existência.

Angèlle, porém, agitou-se. Ao olhar para o espelho, pode ver a sombra da rainha morta, olhos frios e desapaixonados olhando o corpo esquálido na cama.


Continua em 05 de março.

Comentários

Albir disse…
Sigo aqui assombrado e ansioso pela Continuação.

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