FIDELISSIMAMENTE - Segunda parte >> Albir José Inácio da Silva
Como tudo que está mais ou menos pode piorar, uma notificação do Tesouro veio sacudir a frágil harmonia daquela pobreza conformada. O ministro ameaçava confiscar terra e produção por sonegação de impostos.
Fidélio não estava acreditando. Sempre foi leal ao Senhor e separava os tributos antes de vender qualquer coisa. O que ele não sabia era que o édito que obrigou casamentos e deu títulos de posse também reajustou os impostos. “Está cada vez mais caro defender o povo dos malfeitores e das ameaças externas”, explicou o Ministro do Tesouro.
Mas não se abateu, o Fidélio. O Senhor era justo e tudo seria explicado. Se devia alguma coisa, pagaria, mas sem prejuízo para sua família. Munido de coragem e da notificação, rumou para o Castelo.
Benta é que começava a se arrepender daquele casamento. Seu pensamento voava em segredo pelas roupas coloridas, as máscaras e as danças de uma trupe que passava por lá de tempos em tempos.
O grupo tinha má reputação, principalmente as mulheres, com fama de pecadoras que enfeitiçavam os homens e as damas. Os aldeões assistiam às apresentações na praça, dançavam e bebiam a noite toda. Mas pela manhã corriam à igreja para se confessar.
Fidélio voltou comemorando o acordo com o fisco. Por ele, os patos agora seriam abatidos, limpos e entregues na cozinha do palácio, juntamente com as batatas. E pra quem seria esse trabalho extra?
Quando esteve no castelo na noite das primícias, Benta encontrou uma vizinha de infância que era noviça e estava no serviço do Bispo Inquisidor. “Um sátiro depravado aquele barrigudo” – choramingou a amiga. Depois disso encontraram-se algumas vezes quando a outra visitava a mãe. Falavam da trupe e sonhavam com a liberdade. Benta não tinha mais dúvidas, tinha companhia.
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O Duque tinha um filho querido, traumatizado e primogênito. Durante a revolta no castelo, Carluto ficou várias horas com a espada na garganta enquanto se faziam exigências ao seu pai. Nunca mais o jovem se livrou das neuroses, das teorias conspiratórias e da incontinência urinária.
Envolveu-se o Carluto com grupos de malfeitores a quem o reino fingia combater, mas de quem utilizava os serviços quando necessário. Assim eles ameaçavam e extorquiam os aldeões, vendiam proteção e serviços como água, transporte e estalagens. Usando disfarces, o grupo frequentava tabernas e praças em busca de conspiradores e inimigos. Provocavam os presentes, falavam mal do Duque e propunham rebeliões.
Fidélio comemorava contando vantagens sobre o acordo com o fisco, que ele julgava muito vantajoso. Alguns homens que ele não conhecia começaram a falar mal do Senhor e a fidelidade de Fidélio ao Suserano, já meio encharcada de vinho, contestou:
- O Duque é um homem digno e justo. O que estraga são os parentes. Tem até um príncipe mijão que nunca fez nada pra ninguém e vive agarrado num primo da mesma laia.
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Enquanto Fidélio comemorava na Taberna, Benta chorava no travesseiro o aumento de trabalho e a sua vida desgraçada.
No meio da noite, Benta ouviu os passos do marido. Ouviu também um tropel de cavalos. Chegou à porta no momento em que amarravam as mãos de Fidélio e a ponta da corda num arreio. Lá se foi o Fidélio com passos trôpegos tentando acompanhar o trote do cavalo.
(Última parte em 24/02/2020)
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