UM DESVIO NO CAMINHO É OUTRO CAMINHO - 2a parte >> Zoraya Cesar
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Carta XVI, a Torre. Por desígnio do Destino, estruturas iriam ruir. Nada havia a fazer que não seguir o curso do inevitável. |
Quando encontrou sua mestra à morte, soube que o primeiro raio atingira sua Torre.
Magra e miúda que fosse, a Curandeira levou com facilidade o corpo da mestra para dentro da sala. A mulher gorducha e sanguínea, de músculos fortes e rijos dera lugar a um espectro – praticamente só pele acinzentada e ossos quebradiços; a face, de tão encovada, lembrava a de uma caveira coberta por transparente lençol. O pouco sangue que restava mal corria nas veias. Havia um entumescimento sob a pele, como a de um afogado há muito submerso.
Os sinais deixaram Margoleen desconfiada. Procurou. E encontrou as marcas características deixadas pelo ataque de um Craobh. Recuou, apavorada. Não era possível! Um Craobh? Quem ousara despertar o terror das florestas?
Como toda Curandeira, entendia o Ciclo da Vida e da Morte. Só de olhar para Hosmaryn sabia que a mestra, a quem tanto devia, iria morrer, inapelavelmente. Era questão de a qualquer momento.
Precisava entrar em contato urgente com o corpo áurico dela, antes que seu Espírito se perdesse nas Brumas do Olvido, pois, evidentemente, o corpo físico não mais despertaria.
Queimou folhas de sálvia, protegendo o ambiente. Untou as mãos com óleo de olíbano, para evitar que sua energia vital se misturasse à do corpo morrente. Esfregou pó de escama de serpente na testa, à altura do 3º olho. E entrou no estado de clarividência das pitonisas.
A brisa que antecede o surgimento das criaturas noturnas entrou, discreta, quase compungidamente, pela janela. A casa toda parecia envolta numa redoma de silêncio - nada se ouvia além do suave entoar da Curandeira, chamando pelo Espírito de Hosmaryn.
Nas profundezas de sua mente, viu a mestra andarilhando, sozinha e apressada, o semblante preocupado. Viu o ataque do Craobh. E que alguém de feições indistinguíveis salvara Hosmaryn de ser inteiramente sugada pelo monstro. As visões se desvaneceram em fumaça colorida de cinza fúnebre. A mente de Margoleen ficou vazia.
Do lado de fora, o corvo comeu um grilo prestes a cricrilar. Nem as corujas piavam. Tudo era silêncio e morte, como se os elementos estivessem suspensos na mesma expectativa.
O Tempo parou. A Morte, pacientemente, aguardou.
E, na outra dimensão em que se encontravam, Margoleen ouviu a voz da mestra, tão claramente como se estivessem a tomar chá na mesa da sala.
Você tem de voltar à Escola e receber sua Ordem de Mestra do 10º Círculo. Te consagrei como minha herdeira e discípula. Você deve aceitar sua missão. Está escrito. É a Lei.
Margoleen, sem dizer palavra, assentiu. Era a Lei.
O Equilíbrio de Tudo o que Há está em risco novamente. Os Desestabilizadores voltaram. Mais solertes, mais mortais, imiscuídos entre os Guardiões da Luz.
Margoleen sentiu-se afundar. O retorno dos Desestabilizadores explicava os sinais de alerta das sábias anciãs; o despertar do Craobh; e a carta XVI, a Torre, saindo repetidamente em seus jogos.
Sinto muita dor. Me ajude a partir logo. Estou feliz em fazer a passagem pelas mãos da minha aluna mais querida. E, minha filha... Ishtmaeil está de volta...
Lá fora, repentinamente, um sapo coachou. A coruja deu o último pio e voltou para seu ninho. O galo cantou. Raios de sol empurraram as sombras da noite para mais tarde. Um aroma de orvalho inundou o ar.
O Tempo, irmão preferido da Morte, companheiros desde sempre, voltara a correr.
Margoleen desligou-se do transe, o coração partido, chorando alto e desconsoladamente. No entanto, não chegara ao penúltimo círculo da Escola de Curandeiria e Artes Mágicas à toa. Ciente de seus deveres, jamais falharia com aqueles que nela confiavam. Não deixaria o corpo de sua mestra continuar a sofrer, nem seu Espírito ficar preso nesse plano terreno. Ela choraria depois.
(Agora entendia por que fizera o óleo da Passagem. Intuitivamente, previra que ele seria necessário em breve.)
Numa pequena clareira atrás da casa, montou um semicírculo de sal, ametistas e louro. No centro, preparou uma cama de folhas caídas e terra úmida, onde deitou Hosmaryn, ao lado de um córrego. Untou-a com o óleo da Passagem. Fechou o círculo.
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Da Mãe Terra veio nosso corpo. E a ela retornaremos. |
E, dançando em volta da moribunda, entoou a Canção de Partida. Pedia aos Grandes Espíritos que se aproximassem e protegessem a Alma de Hosmaryn de ser capturada pelas Sombras; que a levassem para a Origem de Tudo o que Há, onde ela encontraria paz.
A manhã seguia. O sol do meio-dia encontrou o corpo, já sem vida, começando a se desfazer, lentamente, nas folhas e na terra. Quando as vésperas chegaram, Margoleen, ainda a dançar, mudou seu canto de prece. Agora agradecia pela vida que Hosmaryn tivera, louvava seus feitos, honrava seu nome, sua generosidade, sabedoria. E pedia que, assim como os Grandes Espíritos receberam sua Alma, que a mãe Terra, da qual somos feitos e à qual voltaremos, recebesse seu corpo.
As primeiras estrelas brilharam. A lua estendeu um tapete prateado sobre o lugar sagrado. Um forte cheiro de húmus sinalizou que o ritual chegara ao fim. O corpo fundira-se a terra. O Espírito de Hosmaryn partira.
Margoleen devia se preparar para sua própria viagem.
Voltou para casa, sem olhar para trás.
Os ventos do Leste e do Norte sopraram, suaves e determinados, tudo o que um dia fora Hosmaryn, Mestra do 10º Círculo, sobrevivente da Guerra dos Equilíbrios, fundadora da poderosa Escola de Curandeiria e Artes Mágicas.
Margoleen sentou-se, exausta, dolorida, amedrontada.
A carta da Torre ainda estava sobre a mesa. Tudo acontecera tão rápido, assombrou-se. Em menos de um dia vira sua mestra surgir do nada e morrer; soubera da volta dos Desestabilizadores e que teria que abandonar sua casa.
Mais dois raios e a Torre ruiria de vez. Todas as certezas se desmanchariam em pó. Ela teria de reconstruir sua vida sobre novos alicerces.
Se assim tinha de ser, pensou, assim seria. Havia mistérios a serem resolvidos, perguntas a serem respondidas. Uma Lei a ser cumprida. E havia Ishtmaeil...
Continua dia 21 de fevereiro.
Ilustrações
A Torre - https://br.pinterest.com/pin/452682200038352038/
Folhas - Autumn leaves, Minnowburn, Belfast - October 2016(2)
cc-by-sa/2.0 - © Albert Bridge - geograph.org.uk/p/5156903
Folhas - Autumn leaves, Minnowburn, Belfast - October 2016(2)
cc-by-sa/2.0 - © Albert Bridge - geograph.org.uk/p/5156903
Comentários
E como há desestabilizado era por aí... Esse parágrafo não poderia ser mais realista e atual... Que os guardiões da luz tenham força pra não se deixarem desestabilizar e não bandearem pro lado negro da força...