PURIFICAÇÃO I >> Albir José Inácio da Silva

Soldados impedem a aproximação do povo que se espreme na praça e grita impropérios para os condenados. Oito fogueiras, com intervalos de três metros, estão montadas em volta dos troncos de madeira, onde os infelizes, atados pelos pés, mãos e pescoço, aguardam com olhos assustados e rostos quase sempre desfigurados pelos interrogatórios.


Sob o sol das duas da tarde, o leitão e o vinho do almoço a lhe queimar o estômago, num estrado coberto por dossel, Sua Reverendíssima sua seus paramentos, cercado por autoridades, ajudantes e puxa-sacos. Entre as fogueiras circula o carrasco, aguardando um gesto do superior para iniciar os trabalhos. O bispo tem olheiras, trabalha demais. Hereges brotam como capim e tudo vem cair em suas mãos. Qualquer histeria, ataque de fúria, sonambulismo, qualquer coisa estranha que qualquer um pode ter, acaba no Tribunal.


As bruxas são mais fáceis, confessam tudo, até o que não se perguntou, feitiçarias em lugares onde nunca estiveram. Mas reformados e agnósticos se revelam uma praga. Alguns cantam ou riem no meio das chamas, sarcásticos e debochados. Um despautério que causa muito mal-estar entre os fracos na fé.


Tanta bruxaria e tanta heresia pra cuidar deixam o reverendo esgotado. Já gostou desse trabalho, mas hoje sonha com a aposentadoria. Por ele deixava tudo por conta dos auxiliares que tanto se divertem. Mas não pode. O Papa exige a presença de bispos nas execuções. Horas ao sol, engolindo fumaça e sentindo o cheiro nauseabundo de carne queimada. Não fosse a consciência do sagrado dever, abandonaria tudo para refugiar-se no Convento.


A vantagem é que o Convento fica recheado de tenras e assustadas noviças, capazes de fazer qualquer coisa para evitar o fogo do inferno. A maioria chega ali por pecados graves, como namoros proibidos e outras esquisitices da idade que, bem interpretadas como possessão, precisam ser expiadas.


Mas o convento não dá só alegrias. O dedicado bispo precisa reforçar a segurança: portas, muros e mais sentinelas. Mês passado uma recolhida provocou um escândalo. Fugiu pra Vila dizendo que esperava um filho de padre e não sabia de quem, tantas eram as batinas que visitavam sua cela. Foi preciso queimá-la com barriga e tudo porque, com certeza, carregava o filho do diabo. Todos se divertem, mas na hora dos problemas é com ele.


Os tambores o chamam de volta da maciez das camas do convento para o calor da Praça. Com um gesto ordena que os trabalhos se iniciem. O carrasco pára junto à fogueira mais próxima, e o escrivão relata:


- Este é Pero da Figueira de Cima, a quem ouviram dizer blasfêmias na Taverna do Calombo. Não se confessou perante o tribunal, não pediu clemência e não se declara arrependido.


Caso encerrado no Tribunal, o certo seria acender logo a fogueira. Mas a curiosidade mordeu o sacerdote.

(Continua em 15 dias)

Comentários

Unknown disse…
Suas histórias são sempre ótimas, Albir!
Aguardo ansiosamente a parte II!
Abraço!
albir disse…
Obrigado, Silvia, um abraço.

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