GENÉRICO >> Zoraya Cesar

Mão-de-vaca era seu apelido. Pão-duro, lhe diziam; econômico, respondia.  Não que fosse inteiramente sovina, ele até gastava, mas invariavelmente optava pelo mais barato, ainda que a qualidade não fosse das mais recomendáveis, mesmo quase sempre se dando mal. Era como uma doença, ele simplesmente não resistia a escolher o mais barato, era irreprimível. 

Há sempre um dia (e, volto a lembrar aos Amigos Leitores, “sempre tem um dia que...”), porém, que a coisa desanda, o sujeito perde a mão e também o bom senso. A mulher passou dias reclamando que a casa estava cheia de montículos de pó, os cupins estavam se refestelando na madeira dos móveis - antigos, herança de família que já causara várias cizânias para ver quem ficava com o quê. Principalmente o baú que guardava as cinzas da avó materna (ah, nem me perguntem por que cargas d’água alguém teria em casa as cinzas de um parente. Não faço idéia. Sei apenas que, neste caso, não era por motivos religiosos. Há quem empalhe os animais de estimação, não é? Tem de tudo nesse mundo, ora pois. Voltemos).

Havia duas empresas de descupinização na cidade; uma, tradicional, de qualidade comprovada (inclusive por amigos e familiares) e, naturalmente, cara; da outra, ele não tinha qualquer referência, a não ser que era muito, muito mais barata. Mesmo sob os protestos veementes da esposa, ele não teve um segundo de hesitação e contratou mesmo esta última.

O fiasco, como era de se esperar, foi retumbante: ao invés de morrerem, os cupins ficaram ainda mais famintos. E vingativos também, porque o baú onde as cinzas avoengas repousavam foi atacado vorazmente. A empregada, pressurosa em manter a casa limpa, varreu alguns – muitos – gramas do pó defunto junto com o pó da madeira, pensando tratarem-se da mesma sujeira. As irmãs mais novas da mulher ameaçaram tirar o sacrossanto baú de sua guarda; os cunhados ameaçaram processá-lo por desrespeito aos mortos; a mulher ameaçou sair de casa e pedir o divórcio. Foi um Deus-nos-acuda. 

Mas, enfim, como para tudo tem jeito na vida, até para a morte, segundo dizem, colocaram o resquício do que sobrara dos restos mortais em um recipiente de ferro trabalhado, bonito e imune a cupins, como convém a um receptáculo destinado a tão nobre função.

Passado o susto, contratada a firma de qualidade indiscutível, cessadas as ameaças, permanceu, no entanto, o mau humor da mulher. Acabaram os chamegos, os beijinhos e... vocês sabem o quê.

Ele já estava ficando doido, e ela, firme, inabalável.

Foi então que o desespero lhe deu uma brilhante idéia. A mulher adorava Roberto Carlos - o cantor, não o jogador de futebol, pelo amor de Deus! E, não por acaso (aqui entre nós, não acredito em acasos), o Rei estava fazendo um show num cruzeiro marítimo.

Decidiu que essa era sua grande chance, ela não resistiria a tal demonstração de amor e arrependimento.

Ele se deparou, no entanto, com dois detalhes (tão pequenos de nós dois): os ingressos estavam caríssimos; e havia uma alternativa bem mais barata. Era o show apresentado pelo sósia do cantor, também em um barco (incomparavelmente menor e mais simples, claro), na mesma época e cidade. E ele, maldito vício, não resistiu e comprou ingressos para esse último, sem o mínimo pudor. Afinal era um sósia perfeito!

Garantindo que ela iria realizar o grande sonho de assistir a um show de música do Roberto Carlos (atentem à sutileza da frase), levou-a para fazer o mini-cruzeiro. Ao se deparar com a realidade, a mulher não deu uma palavra, nem pareceu decepcionada. Cantou, dançou, brincou, participou do baile de máscaras organizado depois do espetáculo. Ele preferiu ficar no tombadilho, e, aliviado pelo fato de a mulher não ter demonstrado contrariedade e estar se divertindo, acabou por dormir em uma das inúmeras espreguiçadeiras espalhadas pelo deck.

Acordou de manhã cedo, assustado, e correu para a cabine, é hoje que meu casamento acaba, ela vai achar que passei a noite na gandaia!

Encontrou-a, porém, de excelente humor, sorridente, feliz.

- Que maravilha de surpresa, querido! Adorei sua fantasia de Batman! Não tinha idéia que você dançava tão bem! Andou fazendo aulas escondido?

Como? Sua mulher passara a noite com um homem mascarado de Batman, pensando que era ele? E você não percebeu a diferença?, gritou, apoplético.

- Qual o problema?– defendeu-se ela, ofendidíssima - Você não disse que eu ia realizar um grande sonho? Se eu tive de me contentar com o genérico do Roberto, por que não podia me divertir com o genérico do marido, hein?

Ele abaixou a cabeça.

(Me disseram que a família o obrigou a fazer um tratamento. Não sei se já teve algum resultado, ou se terá algum dia.)

Comentários

Anônimo disse…
mas neste caso, pela alegria da mulher, acho que o genérico deve ter superado o original, kkkk...

o barato sai caro!

cada dia melhor, minha querida, vc está ficando cada dia melhor!

bj, Ana.
aretuza disse…
Pois foi pouco, ela devia ter ficado com o Batman, o Robin, o Super-Homem, com toda a Super Liga!!!!
Unknown disse…
Excelente, Zoraya! Rs!
Os mãos-de-vaca que se cuidem...
Adorei!
Grande beijo.
:)
Alexandre Durão disse…
Zoraya, a malvada, ataca novamente. Suas mulheres, unidas num único volume, seriam o terror dos homens que se acham grande coisa.
A vingança foi merecida e metafórica. Agora, sob a ótica pessoal, acho que um dia essa sua história ainda será matéria de meus pesadelos. Porque se, pra mim, o pior dos mundos seria um cruzeiro com Roberto Carlos, você conseguiu aumentar o medo: um cruzeiro, com um sósia do RC e, nas suas palavras, "num barco incomparavelmente menor". E você ainda chama a crônica de levinha?
Beijos e obrigado pela companhia dessa manhã de sábado.
Érica disse…
òtima! Sua história não poderia ter um final mais feliz... adoro histórias com finais felizes hahahaha
Clá disse…
Fiquei gargalhando sozinha lendo a sua crônica aqui no trabalho? Foi o máximo, um calmante, a terapia do riso!
Ana González disse…
Elas também têm sua hora, né mesmo? Adorei!!! bjss
Zoraya disse…
Oi Pessoal, valeu! Gostei da ideia da Liga da Justiça, acho q vou usa. Alexandre, eu nao sou malvada, os caras é que vacilam, rsrs. Clarice, deve ter sido engraçado vc rindo no trabalho, ninguem deve ter entendido nada! Anas (as 2) e Silvia, obrigada pela leitura e comentários sempre gentis. Erica, vou catar mais histórias com finais felizes. Mas tudo depende do ponto de vista do observador, nao é? Beijos a todos
albir disse…
Zoraya,
coitado do moço pão-duro. Ele não poderia ter tido apenas um prejuízo na bolsa? Será que vai se recuperar?

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