OS PECADOS DE CLARA
>> Albir José Inácio da Silva
Os olhos lambiam a vitrine toda, mas sempre voltavam às empadas. Clara apertava os lábios, que sumiam dentro da boca e apareciam a intervalos, como se estivesse em transe. Nesse estado não tinha como não se assustar com a voz da filha, que fazia de propósito, entendendo que o susto tinha melhor efeito repressivo sobre o apetite da mãe.
- Mamãe, você sabe que não pode!
Não era só a empada não, mas era principalmente a empada. A vitrine devia somar milhões de calorias em forma de salgadinhos, doces e uma infinidade de provocações que, na cabeça de Clara, partiam da gula e chegavam à luxúria.
Para o médico ela não ligava mesmo. Tinha oitenta e três anos, a maioria dos quais contrariando conselhos e proibições alimentares. A questão do pecado, sim, ainda a deixava pensativa. Mas só depois que passava. No ato mesmo, na hora H, não se preocupava com nada. Nem o medo do inferno fazia Clara desistir da empada. Depois a consciência pesava. Pedia perdão, mas sabia que o arrependimento só duraria até o próximo deslize.
Os outros pecados até que administrava bem. O problema do sexo, por exemplo, se resolvia com o casamento. Depois da bênção do padre, podia-se pecar à vontade, virava sacramento. A ira, outro pecado de que às vezes era acometida, resolvia com a reconciliação. Era boa nisso. Deixava passar um tempo, que também não era boba pra engolir depressa os desaforos, e perdoava.
Enquanto Clara cismava essas coisas, e atendendo a um cochicho da filha, o garçom trouxe um copo cheio de um líquido verde e grosso e uma torrada de pão integral. Pacificada a consciência quanto ao dever de vigilância, a filha explicou que estaria no Banco ali em frente, pra adiantar, que a fila estava muito grande. Clara sorriu e a filha, distraída, só viu doçura no sorriso.
Mas o sorriso continha mais que isso. Enquanto a filha ainda atravessava a rua, Clara puxou com a bengala a lata de lixo que estava no canto. Com a mão esquerda empurrou a torrada e com a direita derramou o líquido verde que lembrava “O Exorcista”. Depois, com voz firme e determinada, disse para o garçom assustado:
- Duas empadas e um capuchino grande, moço. Não, três empadas!
- Mamãe, você sabe que não pode!
Não era só a empada não, mas era principalmente a empada. A vitrine devia somar milhões de calorias em forma de salgadinhos, doces e uma infinidade de provocações que, na cabeça de Clara, partiam da gula e chegavam à luxúria.
Para o médico ela não ligava mesmo. Tinha oitenta e três anos, a maioria dos quais contrariando conselhos e proibições alimentares. A questão do pecado, sim, ainda a deixava pensativa. Mas só depois que passava. No ato mesmo, na hora H, não se preocupava com nada. Nem o medo do inferno fazia Clara desistir da empada. Depois a consciência pesava. Pedia perdão, mas sabia que o arrependimento só duraria até o próximo deslize.
Os outros pecados até que administrava bem. O problema do sexo, por exemplo, se resolvia com o casamento. Depois da bênção do padre, podia-se pecar à vontade, virava sacramento. A ira, outro pecado de que às vezes era acometida, resolvia com a reconciliação. Era boa nisso. Deixava passar um tempo, que também não era boba pra engolir depressa os desaforos, e perdoava.
Enquanto Clara cismava essas coisas, e atendendo a um cochicho da filha, o garçom trouxe um copo cheio de um líquido verde e grosso e uma torrada de pão integral. Pacificada a consciência quanto ao dever de vigilância, a filha explicou que estaria no Banco ali em frente, pra adiantar, que a fila estava muito grande. Clara sorriu e a filha, distraída, só viu doçura no sorriso.
Mas o sorriso continha mais que isso. Enquanto a filha ainda atravessava a rua, Clara puxou com a bengala a lata de lixo que estava no canto. Com a mão esquerda empurrou a torrada e com a direita derramou o líquido verde que lembrava “O Exorcista”. Depois, com voz firme e determinada, disse para o garçom assustado:
- Duas empadas e um capuchino grande, moço. Não, três empadas!
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