TERCEIRO CAPÍTULO >> Carla Dias >>


Roça o dedo no vidro da janela e desenha letras, chegando à palavra “efeméride”. Gosta tanto dela, ainda que caçoem dele os primos e os amigos da escola, porque não entendem como moleque feito ele pode entender o significado de palavra tão difícil de ser dita... Ao menos por eles.
Mas acontece que o significado é o de menos, e ele não o entende muito bem. O que mais lhe atrai na palavra é o som, como se ao dizê-la entoasse a mais bela melodia. Não é à toa que deu nome de Efeméride à sua gata. Gosta de chamá-la, e o faz em diversos tons, compondo uma ária de entendimento consigo mesmo.
Obviamente, desagrada-lhe que os primos e os amigos de escola caçoem tanto dele. Porém, o menino sabe que o fazem porque querem mantê-lo afastado, querem que ele se sinta sempre desconvidado aos eventos em comum. Sua mãe, uma doce mulher com tendência à melancolia, é também quem alimenta o mantra “você foi escolhido e precisa cuidar bem do seu dom”.
Na verdade, o menino queria mesmo era soltar pipa, jogar bola, cabular aula para visitar o avô, que mora em outra cidade. Coisas simples para tantos e quase impossíveis para ele. Mas o seu destino fora definido muito cedo, antes que tivesse a chance de fazer a sua primeira escolha consciente. Quando era apenas um bebê, poucos dias como cidadão do mundo, veio à sua casa uma mulher de uma importante linhagem de distribuidores de dons. Ela conversou com a mãe do menino, explicando a ela que ele fora escolhido, entre uma grande safra de crianças com o talento para a profissão, para receber aquele dom, porque poderia começar a trabalhar com ele ainda criança. A mãe dele chorou, esperneou, alegou que o filho era frágil demais para tal profissão, mas a mulher não se abalou em nada, e caminhou, lentamente, como que contasse os passos rumo à eternidade, até o berço do menino, pegando-o no colo e sussurrando em seus ouvidos: de hoje em diante, este dom é seu, e ele será a sua profissão, a sua responsabilidade.
Todos os dias, no começo da tarde, o menino se senta à mesa e a mãe lhe serve leite e biscoitos, e entre palavras de carinho e conselhos sobre como ele deve se comportar durante o trabalho, deixa escapar um engasgo. Às vezes, não contém as lágrimas. Para o menino, por mais que deseje fazer coisas comuns aos de sua idade, o sentimento de comprometimento com o seu dom é o que o torna o mais importante abrandador de mágoas de todos os tempos, uma honra da qual poucos já puderam desfrutar. E ainda que lhe aperte o peito não poder prestar seus serviços à própria mãe, que a cada ano fragiliza-se mais com a profissão dele, o menino se dedica ao seu fazer com a graça que a vida lhe concedeu.
Todos os dias, após o lanche, o menino caminha pela cidade. As pessoas desviam o olhar dele, porque apesar de ele ter uma profissão capaz de lhes aliviar a alma, também é um indicativo das fraquezas delas. E o menino entende, ele pode até não compreender direito o sentido de uma palavra que o encanta, mas ele entende que o ser humano teme perder o poder que nunca teve... O de jamais se sentir fragilizado por uma mágoa.
A seriedade do seu semblante veio com o dom, com a profissão. Para esse menino de dez anos de idade — e uma já impressionante carreira —, o que faz os seus primos e os seus amigos gargalharem é justamente aquilo que, em algum momento, se mostrará das mais profundas mágoas. As chacotas, o descaso infante, o acerto ao ofender seus alvos, a violência emocional. Tentou lhes explicar isso, certa vez, através de uma conversa clara sobre as consequências do que eles faziam. E os moleques zombaram dele até, disseram-lhe que era incapaz de ser feliz, de sorrir, aproveitar a vida.
Avista o homem sentado no banco da praça, o olhar anuviado, braços largados ao lado do corpo. Segue até ele, tranquilamente, e se senta ao seu lado. O homem não atenta para a presença do menino, mas isso faz parte do ofício. Quem realmente estranha o feito são os transeuntes que não entendem a cena.
O menino deita a cabeça no ombro do homem, que suspira profundamente. Então, coloca a mão espalmada em seu peito, e não demora até que ele, o menino, caia em um choro copioso e sentido. Mágoa, sempre diz a mãe dele, é coisa que não se deve colecionar. Porém, é isso que o ser humano faz com maestria, e que o menino tem de ajudar a amenizar, vivendo a mágoa alheia, até diluí-la da alma do outro.
Para uma criança, ser abrandador de mágoas pode ser devastador. Os motivos pelos quais uns magoam aos outros às vezes são tolos, equivocados, mas quase sempre são cruéis. Quando termina o seu trabalho, o menino volta para casa, ainda chorando, e se deita na sua cama e lá fica, até que não tenha mais forças para continuar a chorar. A mãe lhe cuida, abraça, mostra-se presente, mas não adianta. Faz parte do trabalho o menino sentir exatamente o que sentiu a pessoa que ele abrandou.
Depois do choro, da dor, do abrandamento, o menino se senta à janela e observa os outros meninos brincarem. Lamenta saber que, dia desses, terá de lidar com as mágoas dos seus algozes, que terá de sentir deles as mágoas provocadas por aqueles que lhes fizeram exatamente o que eles fazem com os outros. Então chama pela Efeméride que, alheia às dores e aos horrores de ser humano, na simplicidade do bicho, explica-lhe, silente, que não apenas as palavras às vezes nos confundem no sentido que lhes cabem, mas também os sentimentos.



Comentários

Viviane disse…
A singeleza deste texto é chocante!
Toca pela realidade e emociona pelos sentimentos que desperta.
Parabéns, perfeito!!!
albir disse…
Carla,
que não fujamos à responsabilidade de, vez em quando, diluir mágoas. Beleza de texto, como sempre.
Que bela coleção de profissões, Carla! Incluindo a sua, de nos contá-las. :)
Carla Dias disse…
Viviane... Obrigada por ler o texto, por se permitir mergulhar nele.

Albir... Obrigada :)

Eduardo... Ah, alguém tinha de falar desses profissionais :) Obrigada por saber deles.

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