CONVERSA COM UM POBRE JORNAL
>> Eduardo Loureiro Jr.

Quando saí de casa, lá estava ele, dobrado sobre o capacho da porta do vizinho. Enquanto eu apertava o botão do elevador, pude ler a manchete em letras brancas e grandes sobre um fundo preto. O jornal parecia gritar:

"PEGOU O CARRO E MORREU COM CINCO AMIGAS"

Claro que ele queria que eu chegasse mais perto, lhe desse atenção. Eu podia ouvir o seu resmungo repetitivo: "Me abra, me abra. Venha sujar suas mãos de tinta e se escandalizar. Quero ver o seu plácido sorriso matinal resistir a essa reportagem. Venha! Me abra! Junte-se ao coro que julga isso um absurdo, que reclama do cidadão, das autoridades, da humanidade. Vamos, me pegue. Dê pelo menos uma folheadinha. Confira as fotos. Você vai encontrar um infográfico impactante."

Não lhe dei atenção. Peguei o elevador e desci.

Uns 50 minutos depois, retornei. O jornal ainda estava lá no hall. Deixei a sacola com as compras no apartamento, guardei os ingressos para o show do Jaques Morelenbaum e fui bater um papo com o jornal...

— Posso sentar?

— No chão?

— Você está no chão.

— Eu estou no capacho, não está vendo?

Vi que seus ânimos estavam exaltados.

— Tudo bem, já está mesmo no tempo de colocar a bermuda pra lavar.

— Não vai me ler?

— Prefiro conversar um pouco.

— Está tudo aqui. É só ler.

— Ah, meu camarada, tem tanta coisa que não está aí.

— Nada importante, com certeza.

— O céu.

— Que tem o céu?

— O céu lá fora.

— Tá tudo aqui. Previsão do tempo. A chuva continua.

— Que chuva que nada! O céu está azulzinho. Que nuvens delicadas. E o Sol, você já sentiu a bondade do Sol acariciando sua pele, suas páginas?

— Ora, ora... o céu e o Sol estão sempre lá. O que interessa são as novidades. O povo quer variar.

— E que novidade há em bêbados ao volante? Isso tem todo dia. Agora as bicicletas...

— Ah, por favor...

— Sim, faço-lhe o favor de contar. Vi mais bicicleta do que carro nessa minha pequena saída.

— E quem liga pra isso?

— As pessoas que estão pedalando, com certeza. E também eu, que estava de carro, me liguei naquilo. Me importei também com os moradores de rua que colocaram um sofá azul embaixo de uma árvore. Pai, mãe e dois filhos, sentados.

— Fazendo o quê?

— Conversando e olhando pro céu.

— Francamente...

— Sim, do fundo do coração, que coisa tocante. E depois uma fila, pacífica e ordenada, para comprar ingressos para um show de um quarteto de cordas. Não é uma novidade boa o suficiente pra você?

— Você não quer que eu publique uma banalidade dessa...

— Que tal na primeira página, ali do ladinho? Sou capaz de imaginar a surpresa dos leitores ao ler: Fila para ouvir boa música.

— Você é um alienado. Eu trago a realidade, entende. O real, aqui e agora. Não vem com ilusãozinha, não.

— Se é pra falar em realidade, precisa mostrar cotações todo santo dia? Euro, dólar, CDB, IBOVESPA...

— O dinheiro move o mundo.

— E o amor?

— Procure nos classificados.

— O amor move o mundo.

— Se o amor movesse o mundo, ele viveria dançando.

— E não é isso mesmo que acontece? Ainda não lhe ocorreu que esses giros no espaço são passos de dança?

— Você não tem jeito...

— Tudo bem, voltemos aos números. Por que não mostrar diariamente os indicadores sociais? Eu gostaria de saber quantas pessoas saíram da zona de pobreza no mundo, no Brasil, em Brasília, dia após dia. Gostaria de saber se temos mais alfabetizados hoje do que ontem. Quantas crianças são adotadas em cada dia útil? Quantas pessoas aproveitaram o sábado ontem para doar sangue?

— Não é esse sangue que as pessoas querem.

— Você está aí no capacho.

— Meu assinante acorda tarde.

— Talvez tenha acordado cedo e esteja brincando com o filho, conversando com a esposa. Admirando suas faces rosadas, o sangue escorrendo suave e despercebido sob a pele.

— Mas daqui a pouco ele vem me pegar.

— E não seria bom se, ao ler você, ele pudesse continuar com o coração tranquilo?

— Ele quis me assinar do jeito que eu sou. Não tenho por que mudar.

— É, cada um sabe de si. Da minha parte, preciso preparar o almoço. Bem que você poderia dar essa notícia amanhã.

— Você faz macarrão todo domingo.

— Dessa vez, tem novidade. Vou acrescentar ovo cozido, já que minha mulher pediu.

— E por acaso você quer que eu dê uma notícia assim: Marido acrescenta ovo cozido para agradar a esposa?

— Você está pegando o jeito.

— Pode esperar sentado.

— Não, agora tenho que me levantar. O amor move a mim também.

— Sei, o amor... A fome, isso sim.

— Quer uma sugestão para a manchete do próximo domingo?

— Eu não sei o que vai acontecer semana que vem.

— Pois eu sei, anota aí:

PEGARAM OS PATINS E SE DIVERTIRAM NO EIXÃO

— Nem chance!

— Experimenta. Dê essa novidade pelo menos para você mesmo.

O jornal calou-se, pensativo. Eu o deixei lá, esperando por seu dono, e vim lhes contar esta história na alegre esperança de que seja uma boa notícia.

Comentários

Alba Mircia disse…
Querido,

Boto fé de que o pai do João gostaria muito dessas suas sugestões ao jornal dele! Ah, e já agradeço pelo ovo no macarrão! :))
De nada, Querida.

Grato, Laísa.
Unknown disse…
Eu não sei o que é mais doido: conversar com o jornal ou ler a conversa! Mas foi um texto interessante, agradável. Parabéns!



Flaudemiglio
Grato, Flaudemiglio. Sigamos, doidos. :)
albir disse…
Edu,
ainda bem que temos sua crônica para compensar as sangrentas manchetes.
Carla Dias disse…
Poxa, Eduardo, tá aí um jornal que eu leria com o maior gosto. Notícia não tem de ser apenas trágica, né? É bom saber o que de bom somos capazes de realizar. E adorei o bate-papo com o jornal :)

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