A VIDA EM UMA REPÚBLICA >> Whisner Fraga

Com dezesseis anos, eu tinha o sonho de sair de casa, morar sozinho, ou pelo menos longe da família. Não que não gostasse de meus pais, nada disso, mas sentia que precisava de um pouco mais de liberdade do que o quarto compartilhado com dois irmãos me propiciava. Depois, não era somente isso, eu queria cursar uma engenharia que as universidades de minha cidade não ofereciam à população. Naquela época, eu não queria cursar Letras ou Artes ou Pedagogia, porque tinha uma visão meio limitada e imaginava que ganharia dinheiro apenas se me tornasse engenheiro. Some-se a isso um certo nível de fobia social e considerei que me daria bem com máquinas, de forma que não me restava dúvida: deveria encarar a Engenharia Mecânica.

Com dezessete anos, meu sonho se realizou e me mudei para Uberlândia. Morar sozinho era impossível, pois meus pais não financiariam essa loucura. Só que não pensei que ia parar numa república com tantos moradores. Éramos oito. Tudo bem que dividíamos um apartamento de quatro quartos, mas a sala, a cozinha e a copa eram minúsculas. Podia-se perceber que o projetista foi obrigado a gastar boa parte da área disponível com os dormitórios. E tínhamos um único banheiro à disposição. Evidente que só sobreviveríamos se fôssemos organizados: as refeições eram feitas em dois turnos, pois a mesa comportava somente quatro de nós de cada vez. Cada um tinha um horário para o banho, que devia durar, na pior das hipóteses, quinze minutos. Havia uma tabela afixada na geladeira e todos a cumpriam, mais ou menos. Claro que imprevistos, como dores de barriga, causavam dores de cabeça, mas quem disse que a vida é fácil?

Quatro eram de Ituiutaba, dois até hoje não sei de onde vieram, um saiu de Campinas e outro de Feira de Santana, na Bahia. Um ituiutabano atendia pelo apelido de “Gordinho”. Ele não gostava, claro, da mesma forma que eu não curtia quando me chamavam de “Zamis”, mas não estávamos ali para gostar de alguma coisa, certo? A universidade nos ensinava isso. Devíamos cumprir as ementas, obedecer regras, tentar ser aprovados em todas as disciplinas e era isso. Se no meio disse surgisse alguma coisa divertida, era lucro.

Para economizarmos o dinheiro da passagem para casa e, em consequência, termos o que gastar nos botecos de nossa cidade no final de semana, íamos para a pista pedir carona. Às vezes íamos em dois ou até em três, mas quase nunca foi uma boa estratégia, porque os motoristas só davam carona para um. Eles gritavam, sem pudor: “só um”. Tirávamos a sorte para ver quem ia. Geralmente dava certo, a despeito dos xingamentos que o sorteado ouvia a caminho do carro ou caminhão que parara. A volta era mais complicada, pois o fluxo de carros no sentido Ituiutaba – Uberlândia era pequeno. Parecia que todos iam para Ituiutaba e não voltavam. Aí eu levanto a questão: por que Ituiutaba não crescia?

Certa vez, conseguimos pegar os três uma mesma carona. Um caminhoneiro. Foi um milagre. Então, combinamos de voltar juntos, para Uberlândia, de ônibus. Voltamos. Aí naquela semana aconteceu algo engraçado. Sempre levávamos alimentos de casa, normalmente guloseimas, algo que não podíamos comprar com o orçamento racionado de estudante. Nessa semana, levei um pequeno pote de doce de leite, que se esgotou rapidamente. Muito mais rapidamente do que eu esperava, o que significava que estava dividindo meu doce com alguém. Era chato isso, porque, em oito, não podíamos nos dar ao luxo de dividir tudo. Então, não dividíamos nada. Quando alguém ia comer algo, se não fosse adquirido em conjunto, comia sozinho, não oferecia a ninguém e ninguém pedia.

Solicitei uma reunião com todos, pois achei incômoda a situação. Os oito lá, contei que alguém estava pegando o meu doce, que, pelas minhas contas, devia dar para três semanas e durou apenas uma. Então acrescentei que, se o culpado não se entregasse, eu já ia avisando que, a partir daquele dia, ia filar doces, bolachas, o que quer que encontrasse pela frente e que não fosse meu. A ameaça assustou os presentes. Então, o Gordinho falou: não fui eu não, porque eu não gosto de doce de leite. A questão é que eu não havia falado, em nenhum momento, que o danado era de leite e, era impossível, só de olhar para o pote, descobrir isso, pois não havia nada que o identificasse. Podia ser de leite, de tamarindo, de banana, de um monte de coisa que, cozida com açúcar, ficasse marrom, de modo que foi assim que descobri com quem havia partilhado o meu doce.

Comentários

Ô Whisner, dá um desconto pro Gordinho. Sem ele, não haveria história. :)
Carla Dias disse…
Ah, quando a pessoa tem jeito pra entregar o outro, não há quem impeça. Ele te deu outro doce de leite?

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