CARA-METADE >> Carla Dias >>

Eu nunca pensei em alguém como minha cara-metade. Desde que aprendi a reconhecer as coisinhas do amor, penso no outro como um através, capaz de não apenas habitar parte de mim, mas trafegar pela minha existência, visitar profundidades, com a minha bênção, e com a possibilidade de eu fazer o mesmo. Obviamente, isso dá muito trabalho, o que reduz, e muito, minha lista de possíveis cara-metade.
Depois da conversa com a minha sobrinha, encasquetei com esse negócio de cara-metade. Repensei meus amores, os efetivos e os platônicos, e cheguei à conclusão de que os platônicos sempre são os melhores candidatos à cara-metade, porque nos deixam à mercê da imaginação. Ainda assim, esbarrei na lembrança daquele que foi o amor mais amor que já senti. Foi platônico durante muito tempo, e quando deixou de ser, invadiu a minha existência. Não havia nada pela metade ali, mas sim unilateral. Eu entrei na dança, mas perdi o parceiro. Se havia alguma chance de aquela pessoa ser minha cara-metade, a escolha que ela fez de partir, com sua metade a tiracolo, acabou com o plano divino.
Um amigo me indicou o curta “Harvey”, dirigido por Peter McDonald, e ele me vem à lembrança porque, apesar de ser definido como filme de horror, ter cenas fortes e incômodas, eu o acho belíssimo pela poesia contida na metáfora sobre a busca pela outra metade, pelo inteiro de si ao somar-se ao outro. E diferente do que pensa minha sobrinha – e a maioria de nós - há muito mais melancolia e dolência do que apreço quando alguém passa a depender da ideia de que somente em par será inteiro. “Harvey” é uma visão sombria dessa necessidade de encontrar alguém que nos complete, mais próxima ao egoísmo que, quase sempre, acompanha tal desejo. Quem quiser assistir ao curta, clique AQUI.
O que eu quero dizer cruzando as declarações da minha sobrinha com um filme como o de Peter McDonald, é que até mesmo a cara-metade que reconhecemos pode não ser o ingresso para o inteiro de nós. Ao perguntar por que acreditava que aquele menino era a sua cara-metade, ela suspirou seus sentimentos, lembrando-me as mocinhas dos filmes de amor dos anos 50, e disse que ele era uma boa pessoa, compreensivo, educado e que gostava de conversar com ela. E ela idem.
Minha sobrinha não é da safra das meninas de onze anos que sentem as coisas como se tivessem dezesseis, por isso a sua cara-metade tem mais a ver com amizade do que com amor romântico. Depois de o menino dela ter lhe enviado um poema lindo, lindo, e de minha irmã fazer malabarismos para ajudá-la a lidar com o que sentia, minha sobrinha enviou um bilhete para ele, dizendo que eles poderão ser a cara-metade um do outro somente daqui a três anos, ao que ele respondeu: claro.
Ok... Ela havia dito também que ele era compreensivo.
Espero que um dia – daqui muitos anos, de preferência – a minha sobrinha encontre a sua cara-metade, mas que quando isso acontecer, ela já se sinta inteira, sem vazios prontos para serem preenchidos pela identidade de outro. O que chamamos de metade, na verdade, é um inteiro que torna o nosso inteiro mais feliz. É uma soma, não o resgate de parte de nós. Então, nossa cara-metade é uma alma inteira.
A minha cara-metade, neste momento, é uma bela ?
Mas só de pensar que se encontrá-la por aí não terei de esperar três anos para apreciar essa boa pessoa, contar com a sua compreensão e com o seu agrado em conversar MUITO comigo, fico animada por já ter passado – há muito tempo – dos onze anos de idade.
carladias.com
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Comentários
Minha cara-metade foi para outra dimensão há muito tempo.
Não sei se eu o chamava de cara-metade, mas eu me sentia inteira. :)
Bjs
Eu não sei se cara-metade existe. Tenho a impressão de que eu fui feita mesmo só pela metade e não tem nada que possa remediar isso.
Beijo
Fernanda... O que a minha sobrinha ainda não sabe é que há mais de uma cara-metade para cada um de nós. Elas são diferentes uma das outras, pedem por um gostar particular, mas a sensação de tê-la encontrado aparece mais de uma vez, quando não se acerta na eternidade da primeira. Portanto, você pode acreditar que a sua vai chegar, você vai reconhecê-la e viver sua história.
Marisa... Gosto de pensar que a cara-metade não é única, apesar de acontecer de ser. Gosto de pensar que a cara-metade é quem escolhe, sem pensar, estar na nossa vida, e da melhor forma possível. Inteiras ou nem tanto.
Anna... Sinto-me igualzinha a você, sem tirar nem pôr, no que se refere a mim. Não consigo imaginar os meus afetos sem direito à cara-metade. E já assumi que sou contraditória e topo acreditar não acredito em sã e autoflagelada consciência. É preciso que sejamos mais bondosas com o que sabemos, ou simplesmente pensamos sobre nós mesmas. E se for pra levar a vida pela metade, que seja com a opção de sermos surpreendidas.