O BURACO >> Eduardo Loureiro Jr.
Eu só sei que vi
No chão se abrir
Pra flor do espanto meu
Um poço sem fundo
E, lá no fundo, o céu.
(José Miguel Wisnik)
Quando acordou, deitado no chão, sentiu que havia um buraco à frente da sola de seus pés. E não precisou abrir os olhos para saber disso.No chão se abrir
Pra flor do espanto meu
Um poço sem fundo
E, lá no fundo, o céu.
(José Miguel Wisnik)
Sentou-se, ficou de quatro e engatinhou para dentro do buraco, pouco maior que seu próprio corpo.
Quanto mais adentrava, mais escuro ficava. Mesmo que estivesse de olhos abertos, não poderia ver a terra que entrava em suas unhas nem os arranhões que as raízes lhe provocavam nos braços.
Desceu sem medo, guiado por uma voz firme.
— Para dentro, para baixo, para frente.
Começou a clarear e o ar foi se tornando esverdeado para seus olhos ainda fechados. Ele estendeu os braços para frente, encostou a barriga na terra e se deixou deslizar até sair do túnel.
Teve pouco mais de um segundo para ver, sempre sem abrir os olhos, o lago subterrâneo, de água luminosamente esverdeada, em que mergulhou.
Quando chegou ao fundo, descobriu que o canal continuava subaquaticamente. Colou os braços ao corpo, juntou as coxas e os pés, moveu-se em ondas.
— Para a luz!
O verde ficava mais claro. Ele se movimentava mais ligeiro.
O espaço se alargou e ele pôde ficar de pé. Passou a correr, com a água no meio da canela.
Já podia vislumbrar uma abertura a poucos passos.
— Sai!
A partir de um verde quase branco, ele saltou na luz e chegou num branco quase azul.
Não havia mais chão. Ele flutuava, em leve rotação, num tempo sem fim...
Quis ouvir a voz norteadora, mas o céu havia silenciado o som.
Sem condução, conduziu a si mesmo. E desceu, devagarmente ligeiro, flecha certeira lançada ao chão.
Aterrissou com leveza na clareira de uma floresta.
Antes de reconhecer, foi reconhecido. Um bando de meninos veio a seu encontro, em gritaria e festa.
Tomaram-no pelas mãos e o levaram, cheios de alegre saudade, na direção dos adultos.
Quando a viu, ele parou, mesmo que continuasse caminhando. Ela também vinha ao seu encontro, sem saber exatamente o que fazer.
Quando estavam quase perto, a criançada fez roda em torno deles, e cantou e dançou ciranda.
Eles se tocaram num beijo sem bocas, num abraço sem braços. E começaram a girar em sentido inverso ao da meninada.
Rodando, rodando, eram apenas um. E se descolaram do chão, subindo ligeiramente devagar.
Quando chegaram ao céu, cada um se arqueou para um lado, mantendo a união pelos umbigos sem umbigo.
O que havia sido pés e pernas e coxas, e o que havia sido tronco e braços e cabeça, agora era um movimento ondulado, circular.
Formaram uma nuvem mais pesada que o ar. Desceram, desceram, desceram, variando levemente a forma até encaixarem na copa de uma árvore.
Tornaram-se seiva, e estavam em toda parte: galhos, troncos, raízes.
Deram frutos, que os meninos, em festa, colhiam aos saltos.
Volta! — a voz voltou.
O espírito da árvore se despegou e evaporou e se condensou e choveu sobre a abertura, a saída.
A chuva, transformada em peixe, subiu a corrente até o largo verde.
O peixe, transformado em cobra, rastejou o túnel até a boca do buraco.
A cobra, transformada nele, engatinhou e sentou e deitou.
Para, só então, abrir os olhos e procurar, em vão, pelo buraco.
Comentários
Bjs