SIR LUNGALOT == Eduardo Loureiro Jr.
Pras coisas
Que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar...
Sem querer ferir ninguém.
A leitora — que vem aqui de vez em quando — pode pensar que sou um sujeito acolhedor, afável, carinhoso, gentil, cavalheiro até. E é sempre bom, para um escritor, ter leitores que, olhando um copo com água pela metade, diz que ele está "meio cheio" quando bem poderiam dizer que ele está meio vazio. É um alívio para o escritor contar com a benevolência da leitora diante de uma meia verdade.
A outra metade da verdade é que sou um sujeito grosseiro. Não, cara leitora, não queira confirmar essa outra meia verdade com parentes, amigos e rápidos conhecidos. Eles vão lhe dizer que abro portas de carro para mulheres, que escuto com atenção os dramas de um sofredor, que componho canções para crianças recém-nascidas... A crer no que parentes, amigos e conhecidos dizem, a leitora vai pensar — iludida — que o copo está completamente cheio d'água.
A verdade — metade mais metade, inteirinha da silva — é que entre Sir Lancelot, o galante cavaleiro fazendo a corte à sua platônica paixão nas pradarias da Inglaterra, e o rude Seu Lunga, o vendedor de sucata de Juazeiro do Norte respondendo a todos sem paciência, me identifico mais com o segundo.
Quer uma prova? Pergunte a qualquer pessoa que convive comigo por mais de quatro horas diárias, ou seja, minha mulher. E ela lhe dirá, cara leitora, sem dó nem piedade: "É verdade. Eduardo é um grosso. Quando ele ameaça abrir a boca, já fico assustada. Quando não é espinho, é patada. Rabugento, incomunicável. Não deixe se enganar pelo que ele escreve. O Eduardo é osso impossível de roer. Sabe qual o signo dele no horóscopo chinês?".
Cão. Cachorro. Quando uma simpática dona de um canino me diz, "é mansinho, não morde", eu respondo a la Seu Lunga, "até eu mordo, minha filha", e dou uma rosnada para minha espantada interlocutora e seu ganinte cãozinho.
Claro que cachorro brabo a gente deixa em casa, não sai com ele passeando por aí, nem de coleira reforçada. Para a rua, para o trabalho, para as reuniões, para os aniversários, eu levo Sir Lancelot, em sua armadura prateada. Mas não há como andar com uma armadura pesada dessas o tempo todo. Debaixo da sucata prateada, está Seu Lunga, aperreado, impaciente.
Por isso tive que criar para mim uma vida razoavelmente diferente da maioria das pessoas. Não tenho emprego fixo, por exemplo. Se eu tivesse que passar oito horas por dia ao lado de companheiros de trabalho, eles descobririam rapidinho Seu Lunga por baixo da armadura de Sir Lancelot. Então trabalho a maior parte do tempo em casa e procuro me manter em silêncio o máximo possível. Sabe a leitora quantas palavras escrevi até agora, nesta ensolarada manhã de domingo? 469. Isso mesmo, quatrocentas e sessenta e nove palavras. E você pode ter certeza, cara leitora, que isso é mais do que falarei de viva voz neste domingo inteiro. A escrita é uma excelente forma de conter Seu Lunga e polir a armadura de Sir Lancelot. A premeditação favorece o cavaleiro. O improviso libera o sucateiro.
Mesmo assim, de vez em quando, em público, Seu Lunga faz um estardalhaço por dentro da armadura. Quando estou envolvido em um grande projeto, por exemplo. Tais projetos me obrigam a conviver com algumas pessoas por tempo prolongado. A primeira vez foi em 2002, no aniversário de 80 anos de minha avó, cujos preparativos duraram 9 meses. Foi um aniversário inesquecível, com direito a livro, vídeo, missa e quatro festas, mas perdi minha lancelotiana paciência até com minha tia querida. Dois anos depois, durante a exposição de arte do Labirinto, que concluía um doutorado coletivo de quatro anos e meio que fiz com minha então mulher e dois amigos, Seu Lunga se manifestou tão fortemente que perdi a mulher e um amigo (já devidamente recuperado), embora a exposição tenha sido um sucesso de público e crítica. Atualmente, Seu Lunga está sujeito a aparecer novamente durante a produção e os lançamentos do primeiro livro do Crônica do Dia, o "Acaba não, Mundo".
Funciona mais ou menos assim: para quem está fora da armadura, Sir Lancelot; para quem está dentro da armadura, Seu Lunga. O meu individualismo tem aí sua boa intenção: eu quero que vocês fiquem do lado de fora para que eu possa ser gentil com vocês. Quando alguém se aproxima muito de Sir Lancelot (no corpo, na casa, no projeto), está sujeito a entrar na minha armadura e dar de cara — muitas vezes de maneira desavisada — com Seu Lunga. Pense no embaraço mútuo — e nas eventuais subsequentes grosserias.
Como já confessei à leitora, me identifico mais com Seu Lunga. Uma vez que as pessoas com quem convivo o tenham conhecido, não faço mais muita questão de esconder. Seu Lunga, Meu Lunga, diz assim: "Agora aguente, e não trema!".
(Sir Lancelot:
— Eduardo, assim você assusta as pessoas. Dá uma aliviada aí ao fazer a revisão da crônica.
Seu Lunga:
— Bota esse povo mole pra correr. Que só fique quem tiver sustança.)
Bom, creio que agora a leitora não está mais desavisada.
Assinado,
Sir Lungalot
*
Trilha sonora da escrita desta crônica:
"Lancelot", de Willy Astor.
Comentários
Concordo com a Marilza, não é mérito só seu. Me identifiquei totalmente e acho que muitas vezes saio de casa sem armadura nem nada.
E que fiquem perto os de sustança...
Pe. Albir, qual a penitência da confissão? :)
Cuidado com o privilégio que deseja, Marisa. Você pode conseguir. :)
Marilza, quer dizer que sou um escritor iludido?! Adorei saber. :)
Isso dá um livro: A Desarmadurada Silvana e os Sem-Sustança. :)
Fernanda, que Deus abençoe você e seus colegas de trabalho. :)
Beijão Lancelot!
Sua mulher é uma Santa! Toda minha solidariedade cúmplice a ela... :))
Beijo, moço.
Bjos!
Carla, gostei da versão feminina: Guinevere e a baiana "rodada". :)