ANGELUS >> Albir José Inácio da Silva

A Ave-Maria era ouvida onde se estivesse porque os rádios de todas as casas tocavam. Os meninos então sabiam do chamado das mães e as mães sabiam que era hora de chamar. Os pais chegariam perguntando “e os meninos?.

As mães mais bravas por causa dos pais mais bravos chamavam seus filhos da rua primeiro. Rua era qualquer lugar fora das paredes, não fora dos muros, porque não havia muros. Não havia despedidas, boa noite, adeus. Só continuação, amanhã me devolve, depois te pago, vamos no rio amanhã.

Sem ternuras na fala, só providências que mãe doente precisa da ajuda de todos: “Não vai querer cana-do-brejo? E quebra-pedra? Lá em casa tem muito.” Se Dona Dalva ia morrer, só perguntando em casa pra nossa mãe se ela escapa.

Dos pais falava-se pouco. Sabia-se menos. Trabalhavam. Avisavam-se os mais distraídos: "Cara se manda, teu pai acabou de passar". Tudo isso enquanto durava a Ave-Maria. E todos se benziam no início na rua e no fim já em casa.

A esquina ficava vazia e ninguém, ninguém ainda sabia que alguns não teriam tempo de lembrar desse tempo. Outros se encontrariam com os olhos úmidos daquela poeira. Outros escreveriam sobre ela com os olhos secos e a letra tremida.

Não desconfiavam que a foto de meninos assustados já estaria amarela, e os medos seriam outros, e a solidão não poderia ser disfarçada combinando nada para amanhã.

E não se saberia mais que o dia acabou por não haver brincadeiras a encerrar, nem mães doentes e vivas precisando de chá.

Não imaginavam que a escuridão de fora não existiria por culpa da eletricidade. E a de dentro já não seria ouvida por mais que se rezasse Ave-Maria.

Comentários

Que lindeza, Albir! Belo mergulho no tempo, na memória, no sentimento...
Marilza disse…
Lindo Albir! Mudança dos tempos...
albir disse…
Obrigado, Edu, sempre incentivando os mergulhos.

Obrigado, Marilza, por acompanhar conosco a mudança dos tempos.
Albir, que coisa bonita e nostálgica. Mais um lindo presente seu aos leitores.
albir disse…
Presente é a sua leitura, Marisa, Obrigado!
Zoraya disse…
Nossa, que lindo resgate de memória! Muito sensível e poético, puxa,obrigada!

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