MUITO ALÉM DE UM RAMERRAME >> Leonardo Marona
Encontro sempre Ismar Tirelli como que por acaso, mas na esperança de encontrá-lo. Não que necessite de sua presença, mas sua presença em determinados lugares – sempre onde o acabo encontrando, lugares muitas vezes arriscados – me tranqüiliza, afeta meu lado católico. Dessa vez não foi diferente. Nos encontramos em um – como chamam? – sarau de poesia, mas não é mais assim que chamam. Performance, arrojo de penas, saúde frágil, olheiras de alegria, e foi o suficiente para eu começar a transpirar sangue. Mas ali estava Ismar, com seu inafiançável suéter de lã, um nobre saxão, com um toque de MacDougal Street, calmamente me dando psiu. “Marona, proponho um escambo”, ou algo assim, foi o que ele me disse, estendendo-me seu novíssimo Ramerrão (7Letras), enquanto em troca eu dava meu também novo (mas depois eu descobriria que não muito) livro de poemas. E ficamos assim: ele comprava no posto ao lado uma cerveja preta e eu bebia infantilmente rápido, porque não estava preparado para uma leitura de poemas, nunca achei que fosse realmente essa a questão, tinha sido até então confortável pensar assim. Mas agora eu estava ansioso por aquilo, e ao mesmo tempo me sentia pasmo e envergonhado por me sentir assim.
- Queria saber quanto tempo eles vão nos dar – disse Ismar.
- Você pode ler dois textos longos ou três médios, ou quatro curtos.
- Sim, mas me agonia não saber exatamente quanto tempo tenho.
- De todo modo, podemos apenas ler, que chance a gente tem?
- Sim, arruinados. Mas é orgulho também o que não se tem. A mim me basta ler seriamente. Alguns minutos com algo “bem sério”.
Lemos, foi tudo meio médio. Ficamos todos com vontade de sair, vomitar talvez numa lixeira e seguir até um bar de rua. No bar encontro Ismar com dois amigos, menina e menino, pessoas bonitas, limpíssimas, gentis. Estamos ainda um pouco eletrizados e começamos a falar do bar onde bebíamos em Laranjeiras, boca braba de vagabundo e traficante. Rimos um pouco, paramos. Posamos de máfia filipina. Tive que ir embora, tinha um encontro amoroso. Ismar me parabeniza calorosamente, “é muito tarde para se ter tamanha sorte”.
O encontro amoroso poderia ser até uma desculpa, não importa. O livro estava comigo, “antes do que todo mundo”, me foi dito, e havia de fato uma sensação de que algo estava sendo defumado dentro da mochila. Então levei essa horrível machadada na cabeça, fiquei ali estirado no chão das crises fumegantes das quais trata o livro, e que não são passíveis, talvez, de resolução, mas são as nossas vidas malapropos, os empregos que nos são dados e nos estouram as espinhas, as caras crescidas, que se alugam por temporada, a ereção despropositada nas calças do avô. Ismar Tirelli Neto estava ali e, com delicadeza firme, até mesmo ainda um pouco assustado, me lembrava que “vamos sempre constatando que nada rufou”. Isso é ao mesmo tempo um alívio imediato, seguido de uma profunda identificação, e descamba para um sutil desespero, que só se vê nos antigos filmes franceses. Ismar conhece os filmes franceses, conhece a língua vernacular, e conhece, principalmente, a “festa do intelecto” de Valery. Assim seu Ramerrão atropela todo o ramerrame que cerca feito hiena nossos corações aflitos. De fato, admito que seja um livro para corações aflitos, ou que ao menos assumem que podem ficar aflitos a qualquer minuto.
O impacto de Ramerrão é o impacto de uma nova máquina, um novo processador de pensamento ágil e escorregadio, podendo ser também, aos desavisados, um grande desgosto. Nada ali é um convite. Um abraço amigável. Acabaram os gracejos e os aleijões. “É bem longe que se assina a paz”, constatamos isso nesse tom que não é um desespero nem uma crença, é tão somente um flutuar com garras leves sobre a história das sensações humanas. Um tanto desconcertante é reparar que tais linhas foram criadas pela mesma pessoa que se viu uma vez preocupada com o tempo que lhe seria dado para uma leitura. As probabilidades desajeitadas parecem nutrir de ternura truculenta os poemas, e o “personagem poético”, digamos assim, torna-se uma espécie de Brancaleone desconjuntado, e por mais que ele às vezes nos cause uma sensação de que não podemos acompanhá-lo, tornamo-nos fiel à sua causa, por ternura.
Os movimentos chulos são mitificados em casacos de vison, tiros pela culatra, paixões alavancadas e, acima de tudo, um racha com a vida das paredes brancas e frias dos escritórios. Depois se giram todos os graus, somos abandonados sempre no ápice da sensação, e Ismar descarrega no leitor sua bagagem pesada que vem, no entanto, com belíssimos adesivos de viagem. Porque ele sabe muito bem que nosso desejo não deve encontrar pouso jamais, e sobre essa corrente elétrica correm as palavras-ímãs, rainhas disfarçadas em meio à plebe cotidiana, enquanto que para nós ficam os inestimáveis choques de alta voltagem. É até certo ponto absurdo. Está ali um senhor polido, educadíssimo e agradável, falando elegantemente uma língua que nunca se viu, uma mescla de aliterações tropeçadas na margem frágil em que vivemos nossa “linha de conduta por um fio” e, principalmente (após abandonar Kant para tornar-se humorista), nossa vontade genuína de não mais fazer rir.
Para não fazer rir, a poesia de Ismar Tirelli Neto tornou-se revoltante. Leiam e saibam que é muito provável que se tenha ganas de janela. Porque suas bases são vaporosas e estão sempre em movimento. Mal conseguimos identificá-las, estão noutro lugar, transfiguram-se em pó de face, café, passam a outra ocasião, “acontecem o dia”. Seria possível, num rompante, gritar que a poesia de Ismar Tirelli Neto é uma justiça sem escrúpulos, porque nos arrasta pelo braço sobre as chamas do espanto, como ele mesmo diz, “o meu é o trabalho do espanto. O nosso é o trabalho do espanto”. E isso não é um “convite ao esclarecimento de um equívoco precioso”, mas um anúncio da obrigação de não se ter escolha: o espanto é nossa única margem entre a loucura e a criação.
Comentários
Estava sentindo muita falta de seus escritos por aqui.
Que bom que está de volta com seu talento de sempre!