CAMINHO >> Carla Dias >>

Nessa andança, vejo algumas pessoas todos os dias. Uma delas é uma senhora, sessenta e poucos anos, que caminha, logo cedo, treinando os passos que já não dá mais com a mesma desenvoltura de alguns anos. A cada cinco passos meu, ela consegue dar um. Não há viço nessa mulher, estranhamente, sua fisionomia nada diz. Ela apenas caminha, exercitando movimentos que, em algum momento de sua vida, não precisavam ser relembrados... Aconteciam, de acordo com o desejo dela.
Há também um casal de japoneses, velhinhos, que assim como a mulher sobre a qual falei, sobem a avenida, enquanto eu a desço, exercitando-se. Sei bem que a idade pede tais exercícios para que nosso corpo entenda que ainda há muita vida nele. A mulher solitária não reconhece isso... Seu passeio é dolente. Mas o casal, eles têm o fôlego dos sábios, de quem busca, a cada passo, o adiante.
Durante a jornada de chegar ao trabalho, acabo sempre sendo escolhida para as urgências alheias. Como a dessa mulher que, vez ou outra, eu encontro. Um dia, ela se enroscou no meu braço, deixando-me ainda mais consciente da sua baixíssima estatura, dando-me a impressão de estar ao lado de uma criança, e disse que tinha de chegar à igreja do outro lado da avenida, mas estava com medo de não conseguir sozinha. Eu a levei até lá, enquanto ela desfiava histórias sobre si e suas crenças. Outro dia, eu a vi dependurada no braço de outra pessoa.
Mesmo caminhando com fones de ouvido, a música no talo, sou parada com frequência. Na maioria das vezes, as pessoas vão dizendo o que têm de dizer, sem se darem conta de que ainda estou com fones de ouvido. Uma vez foi no ponto de ônibus... Uma senhora parou perto de mim e começou a falar comigo, mas eu só notei um pouco depois, quando me virei e a vi ali, porque eu estava escutando música e não o que ela dizia.
Tirei os fones... Ela me contou a vida do seu gato, de como ele se sente só quando ela está longe, que apesar de doente, é uma boa companhia. Para mim a história parecia a dela, porque logo a mulher começou a dizer que, vez ou outra, se sente muito só, que anda com a saúde ruim, tem de andar com a ajuda de uma bengala. Durante toda a conversa, eu só emitia alguns sons de concordância, de compreensão e de surpresa. Minha única fala foi “meu ônibus chegou, boa viagem para a senhora”. Aquela mulher não precisava de uma faladora, mas sim de uma escutadora. E eu escutei.
Não me lembro de ter contado a minha história a qualquer pessoa que já me abordou nas ruas, nas lojas ou nos pontos de ônibus. Lembro-me, na verdade, de pouco dizer. Desde sempre, sou uma escutadora, com boa margem de paciência para que estranhos contem o que os aflige ou os alegra, porque não são apenas mágoas, desespero e dolências que levam as pessoas a conversarem tão abertamente com estranhos. A alegria também... E já fiquei sabendo de nascimentos, casamentos, reencontros. Já parabenizei, sem mesmo saber a quem.
A cada dia, a vida me surpreende mais, trazendo-me essas pessoas que, por solidão ou incapacidade de conter a ansiedade, dividem comigo suas tragédias e conquistas. E também aquelas que, em silêncio, passam por mim, suas histórias em evidência nos passos, nos traços, num caminhar pela cidade.
www.carladias.com
Comentários
Beijinho.
Drika
Drika... Minha amizade é sua, assim como meus ouvidos, pra quando você precisar de uma escutadora. Beijos!
Eduardo... Nem sempre estou bem para ouvir o que as pessoas têm a dizer, mas isso não demora muito. As importâncias das pessoas são tão diferentes que acabam seduzindo os ouvidos da gente.
Convidado para o passeio matinal sempre que estiver a fim : )
Adoro seus textos!
Bjs
o cronista é um andarilho que ouve. Com todos os sentidos, claro.
Beijos e obrigada!
Albir... Concordo plenamente.