NUA, EM FRENTE AO ESPELHO
[Maria Rita Lemos]
Há dois anos, mais ou menos, participei de uma oficina de redação com um renomado escritor e amigo querido. Entre outros exercícios, João Silvério pediu para que, como lição de casa, ficássemos frente ao espelho, tão despidos(as) como chegamos ao mundo. Fiquei preocupada, ciente de que seria um encontro difícil, meu corpo de agora e meu corpo de antes.
Enfim, o exercício tinha que ser feito até sábado, então vamos lá.
Nua, na frente do espelho grande do quarto. As vozes vieram chegando, bem de dentro, a princípio sussurrando.
“Vim para me despedir. Mas, antes de partir, tenho coisas para lhe dizer” — foi a voz grave e séria do corpo que eu via circundando o meu, figura embaçada e nebulosa. Era uma espécie de auréola, que me envolvia toda. Uma sombra bem mais larga que eu, ao redor de mim mesma.
“Que é que você fez dos trinta quilos a mais, que eram seu corpo, ou melhor, o meu, ou o nosso corpo, há algum tempo atrás?” o tom da voz era de censura.
“ Sei lá”, respondi. Agora era minha voz, minha boca. Eu via a articulação dos lábios, que não havia quando a sombra é quem falava. “Talvez tenham derretido para fazer sabão, talvez tenha entrado numa espécie de limbo adiposo... sei lá, sei é que não os quero mais, aqueles quilos em excesso, pesavam-me muito”...
“Até que você não era tão feia assim...” a voz insistia. Quem sabe meu alter ego, minha sombra, meu passado.
“Feia eu não era, eu sei, mas estava pesada, sentia-me mal. Era difícil levantar-me com agilidade. Eu morria de medo de ficar entalada em alguma catraca de ônibus. Queria usar roupas sensuais, deixar aflorar minha ousadia, mas nada havia do meu tamanho. Por que será que todo mundo acha que gorda tem que dormir de camisola de flanela de florzinha, sem charme nenhum?”
“Isso é verdade... (risos)... Lembra quando você foi ao motel e não cabiam duas pessoas na mesma banheira de hidro? Alguém tinha que sair, para a outra pessoa entrar... foi engraçado..” — era a voz, maldosa, lembrando coisas que eu queria esquecer. Eu morria de vergonha, e disse isso, bem alto, no espelho. Eu morria de vergonha.
“Vergonha, você? Deixa de ser cínica, mulher... com tudo o que você já fez na vida, quer dizer que tem vergonha?”
Comecei a me alterar. A moça educada no colégio de freiras foi chegando, aos poucos.
“Cínica por quê? Por que acha que eu não tenho direito a ter vergonha?”
Era a culpa, pondo o velho olho de fora. A sombra sabia, ela sabia tudo de mim.
“Isso sem falar que acabaram-se as cervejinhas que você tomava falando da vida, das crianças, do tempo e do vento... agora é só uma brejinha de vez em quando, que até esquenta, uma latinha para a noite toda, é só o que cabe no que lhe restou de estômago...” implacável, a sombra prosseguiu, para minha angústia: “Não importa, só vim mesmo me despedir. Você me mutilou, me cortou sem avisar, me despediu sem aviso prévio. Agora pague o preço, com suas blusinhas tamanho médio, ridícula, usando as roupas de sua neta... esqueceu quantos anos tem? Mas antes de partir, quero lhe dizer algo: metade de você já se foi, metade da vida também, aliás, mais da metade. Você sabe disso, não sabe?”
“Sei. Ninguém me deixa esquecer”. Minha voz estava reduzida a um fio.
“Vou sair de vez de sua vida. Deixo-a com a barriga costurada, o estômago diminuto. Deixo metade de você inteira, mas espero que conserve essa metade. E que não perca nem um único grama de sua essência...”
“E por que eu perderia?”
“Sei lá, de repente pode perder. Cuidado, mulher, cuidado para não perder sua inteira ternura, sua ternura antiga e inteira”. Agora era a voz que estava mais macia, despedindo-se de mim. “Não perca aquele jeito de gostar dos outros, de chorar em todas as despedidas... isso a cirurgia não tirou de você... ou tirou?”
“Não tirou. Estou certa de que não, já tive despedidas depois e chorei igualzinho.”
“Também não grampearam sua vontade de música, do seu cheiro de terra molhada e de bolo de laranja saindo do forno, não é?”
“Acho que não...” — e agora eu sentia meu “outro eu” como uma amiga, uma velha amiga conversando comigo”...
“Foi bom, tá vendo, nem ficamos de mal. Adeus, mulher teimosa”...
“Adeus, pedaço exilado de mim... — e eu ri para o espelho — nem lhe peço que volte sempre... aliás, não quero mesmo que volte. Vá embora para sempre, amiga, você já não me pertence mais...” — e agora eu ria, abertamente.
Enquanto isso, a sombra à minha volta fundiu-se, no espelho, à minha figura nua e solitária. Foi assim que eu fiquei, despida, no espelho grande do quarto de meu filho.
Toda a cena durou uns cinco minutos, se tanto. Mas foi uma linda e intensa despedida.
Enfim, o exercício tinha que ser feito até sábado, então vamos lá.
Nua, na frente do espelho grande do quarto. As vozes vieram chegando, bem de dentro, a princípio sussurrando.
“Vim para me despedir. Mas, antes de partir, tenho coisas para lhe dizer” — foi a voz grave e séria do corpo que eu via circundando o meu, figura embaçada e nebulosa. Era uma espécie de auréola, que me envolvia toda. Uma sombra bem mais larga que eu, ao redor de mim mesma.
“Que é que você fez dos trinta quilos a mais, que eram seu corpo, ou melhor, o meu, ou o nosso corpo, há algum tempo atrás?” o tom da voz era de censura.
“ Sei lá”, respondi. Agora era minha voz, minha boca. Eu via a articulação dos lábios, que não havia quando a sombra é quem falava. “Talvez tenham derretido para fazer sabão, talvez tenha entrado numa espécie de limbo adiposo... sei lá, sei é que não os quero mais, aqueles quilos em excesso, pesavam-me muito”...
“Até que você não era tão feia assim...” a voz insistia. Quem sabe meu alter ego, minha sombra, meu passado.
“Feia eu não era, eu sei, mas estava pesada, sentia-me mal. Era difícil levantar-me com agilidade. Eu morria de medo de ficar entalada em alguma catraca de ônibus. Queria usar roupas sensuais, deixar aflorar minha ousadia, mas nada havia do meu tamanho. Por que será que todo mundo acha que gorda tem que dormir de camisola de flanela de florzinha, sem charme nenhum?”
“Isso é verdade... (risos)... Lembra quando você foi ao motel e não cabiam duas pessoas na mesma banheira de hidro? Alguém tinha que sair, para a outra pessoa entrar... foi engraçado..” — era a voz, maldosa, lembrando coisas que eu queria esquecer. Eu morria de vergonha, e disse isso, bem alto, no espelho. Eu morria de vergonha.
“Vergonha, você? Deixa de ser cínica, mulher... com tudo o que você já fez na vida, quer dizer que tem vergonha?”
Comecei a me alterar. A moça educada no colégio de freiras foi chegando, aos poucos.
“Cínica por quê? Por que acha que eu não tenho direito a ter vergonha?”
Era a culpa, pondo o velho olho de fora. A sombra sabia, ela sabia tudo de mim.
“Isso sem falar que acabaram-se as cervejinhas que você tomava falando da vida, das crianças, do tempo e do vento... agora é só uma brejinha de vez em quando, que até esquenta, uma latinha para a noite toda, é só o que cabe no que lhe restou de estômago...” implacável, a sombra prosseguiu, para minha angústia: “Não importa, só vim mesmo me despedir. Você me mutilou, me cortou sem avisar, me despediu sem aviso prévio. Agora pague o preço, com suas blusinhas tamanho médio, ridícula, usando as roupas de sua neta... esqueceu quantos anos tem? Mas antes de partir, quero lhe dizer algo: metade de você já se foi, metade da vida também, aliás, mais da metade. Você sabe disso, não sabe?”
“Sei. Ninguém me deixa esquecer”. Minha voz estava reduzida a um fio.
“Vou sair de vez de sua vida. Deixo-a com a barriga costurada, o estômago diminuto. Deixo metade de você inteira, mas espero que conserve essa metade. E que não perca nem um único grama de sua essência...”
“E por que eu perderia?”
“Sei lá, de repente pode perder. Cuidado, mulher, cuidado para não perder sua inteira ternura, sua ternura antiga e inteira”. Agora era a voz que estava mais macia, despedindo-se de mim. “Não perca aquele jeito de gostar dos outros, de chorar em todas as despedidas... isso a cirurgia não tirou de você... ou tirou?”
“Não tirou. Estou certa de que não, já tive despedidas depois e chorei igualzinho.”
“Também não grampearam sua vontade de música, do seu cheiro de terra molhada e de bolo de laranja saindo do forno, não é?”
“Acho que não...” — e agora eu sentia meu “outro eu” como uma amiga, uma velha amiga conversando comigo”...
“Foi bom, tá vendo, nem ficamos de mal. Adeus, mulher teimosa”...
“Adeus, pedaço exilado de mim... — e eu ri para o espelho — nem lhe peço que volte sempre... aliás, não quero mesmo que volte. Vá embora para sempre, amiga, você já não me pertence mais...” — e agora eu ria, abertamente.
Enquanto isso, a sombra à minha volta fundiu-se, no espelho, à minha figura nua e solitária. Foi assim que eu fiquei, despida, no espelho grande do quarto de meu filho.
Toda a cena durou uns cinco minutos, se tanto. Mas foi uma linda e intensa despedida.
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