ULTIMOS POEMAS >> Leonardo Marona

"corinthians centenário"

é pena que não acreditem mais na sujeira
dos rostos dos amantes brutos, sem fala,
que se amontoam à beira do suplício raro,
e não cobram nada, mal sabem pronunciar,
estão loucos, com o rosto sujo, e as velhas
revoluções proletárias falsificaram novos
atos perdidos e sem terra à vista, sem voz,
de tanto gritar a loucura doce e perigosa
dos que nasceram para sofrer de grandeza.


"aula de etnografia"


somos todos índios, somos todos os futuros
animais caçados por animais que serão a caça,
e eu agora sou bem mais um bicho preguiça,
um porquinho da índia meigo, e será difícil
que algum humano queira me ter como caça,
pobre de mim, coala sentinela fúnebre, olho
semi-cerrado, girando súplice pela passagem.


"hemingway"


pouco importa se inventamos reis,
odres de vinho, generais inexistentes.
importa apenas manter os cavalos
nas rédeas dos acontecimentos.
e, vestidos de mulher, estamos
nas frentes sangrentas que nos
arrancam quase a perna, nos dias
de selvageria e presunções mitológicas,
nas orgias emocionais submarinas,
e pouco importa que a carne agora
seja bem menos uma prova de vida
e bem mais uma forjada vitória fácil.
não queremos a verdade, queremos
poucas palavras, rasas e farpadas,
porque no fundo sabemos, sentimos:
temos medo, e o cano na têmpora.


"mahler"


quando se ousou voar com os pássaros,
só se deve saber mais uma coisa: cair.
(Rainer Maria Rilke)


chegou, enfim, o domador de abismos,
preparador de aquários de uma nova era.

graças a deus, és o inoportuno, o macaco
judeu com meio metro de testa, os olhos
de serpente, a pose chapliniana, pequeno,
o que dava pele aos fantasmas e, bem ali,
de nós até deus existe apenas um passo,
nos tíbios sentimentos pela ansiada paz.

grande ator fazendo um grande homem
que caminha rua abaixo e segue os gritos
proletários pensando: “eles sim são meus
irmãos, porque eles são o futuro”, e nós,
esse futuro, não sabíamos que se começa
abatido a pauladas, e um intruso nunca
deixa definitivamente de sê-lo, e que há
sementes de dúvidas no real significado
da liberdade, parênteses entorno do amor
e da própria morte, mas você, o que sabe
da carne trêmula, se pudesse dizer, diria:

“não temam, meus filhos, é preciso saber
que se bate com a cabeça contra a parede,
mas, saibam, é a parede que terá o buraco”.


“auschwitz”

sinto orgulho dos meus dedos feios,
que um dia foram bonitos, mas que
coisa mais incrível de sentir orgulho,
sobre o orgulho dos dedos tão feios,
hoje são feios, vividos e feios, vividos
de pôr abaixo as paredes retroativas,
são dedos feios, mas com belos nós –
e finalmente eu me orgulho: colhedor
de cenouras polonês, sabão humano.


"poema para meu amor"

há uma ponte de safena entre nós,
e o problema, baby, é que ela nasce
de um aborto cultivado, a poesia é
uma outra coisa e, talvez, ela possa
também ser má comigo, com o que
chamamos de Nós Dois Juntos, ela
nasce do sangue excessivo que nos
joga na vida sem veias – e, é lógico,
é possível amar ainda, faremos isso,
mas se vive da poesia, vá perguntar
ao safenado – e a poesia, meu bebê,
é uma outra coisa: as bases hesitam,
há uma ponte de safena entre nós.


"não serei"

não serei um senador de modos elegantes ao jantar,
que no jardim enterra os medos, as ilusões antigas,
não serei o vagabundo riquinho que bate pega e mata
o rapaz de classe média que andava de skate no túnel
e que talvez, por mais duro que seja, estivesse mesmo
esperando pela morte bruta com a força dos metais,
mas não serei nem ele, o regurgitador de ferro e aço,
nem bem serei a pálida criatura que cultiva olheiras,
nem o parasita pródigo, mas um pouco serei o parasita,
serei também ondas curtas de paixão, das que inspiram
o passado brasa-mora e a cultura iê-iê-iê, essa gentalha
que não sabe como é duro sobreviver do próprio vício
de não ser e não ser e não ser e no fim não ter forma,
nem garota preciosa, nem ginga de bibelô, rebolar
é para os que desviam dessa frágil grandeza estéril,
desse bater de frente com o ridículo da auto-aceitação.


"all my loving"

será estranho, no entanto, quando, na rua, estiver tocando
“all my loving” no centro da cidade e, junto a mil pessoas,
a banda mambembe - como no fundo somos todos nós os vivos - me fizer chorar,
pois algo queima entre a espinha de Descartes e a jaqueta esfaqueada de Espinosa,
e será estranho, no entanto, pensar nas coisas da ilusão dos decretos livres,
enquanto Espinosa jaz enterrado com seu paralelismo e sua rinha de aranhas,
e Descartes coleciona condecorações em faculdades estéreis,
e minha namoradinha está em casa estudando a coisa do amor entre os povos,
e ela diria “não são bem coisas do amor”, sem muita paciência, e se eu a amo
é pela completa falta de paciência e pelo excesso de amor,
mas ela não sabe, a minha namoradinha, e nem eu bem sei, como ela diria,
que “all my loving” pode ser também suficiente, na rua, diante da banda cigana,
e talvez ela também não acredite - não posso culpá-la - que uma namoradinha
justifique uma lágrima no deserto, e as ruas irregulares onde, todos os dias,
escorremos hemorrágicos, carregados de mitos em pedra, sem paredes.

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