AS RATAS E DONA ANÉSIA
>> Eduardo Loureiro Jr.
Foi no Ratomóvel que chegamos à roça de Dona Anésia. Para quem não sabe o que é "roça" — eu não sabia —, trata-se daquilo que nós nordestinos chamamos de fazenda: uma propriedade rural. O Ratomóvel é o carro de Raquel, a Racutia, que, junto com Célia, o Racumim, encenam uma peça engraçadíssima chamada "Deu rato na biblioteca".
Voltávamos da Feira Literária de Unaí, em Minas Gerais, onde havíamos nos apresentado. Aceitei a carona das "ratas", embora minha casa estivesse longe do roteiro original delas. Estava com saudade de prosear com essas duas amigas queridas, tão diferentes e tão complementares. Foi de Célia a ideia de comprar uns queijos na casa da mãe de uma das organizadoras da Feira, na saída da cidade. À frente do Ratomóvel, nos indicava o caminho a neta de Dona Anésia. Quando o carro saiu do asfalto e enveredou por uma estrada de terra, perdi minhas esperanças de retornar logo para casa.
Eu estava cansado, quase exausto. Nos últimos três dias, havia acordado antes do nascer do sol e trabalhado por mais de oito horas, sem tempo para fazer minha caminhada, cuidar de meu primeiro romance, ler e editar os textos da Crônica do Dia, dentre outras coisas miúdas e prazerosas que gosto de fazer no meu dia-a-dia.
Depois de muitas curvas, os carros estacionaram no meio do tempo. Era como se fosse o mar, mas um mar feito de terra. Um mar de tons pastéis, em vez do mar verde-azulado de minha Fortaleza. Desci do ratomóvel e girei 360º, reconhecendo a paisagem feita de estrada, cerca, currais e casa. Lembrei de umas placas penduradas em postes de iluminação da W3, uma avenida de Brasília. Eram sete placas, uma para cada sílaba da frase: "Dê es-pa-ço ao tem-po".
Seguindo a neta, entramos na casa até encontrar a dona na cozinha. Até mesmo Dona Anésia parecia feita de terra. A pele marcada pelo sol e pelo trabalho. As roupas simples. A fala de vento, de árvores, de passarinhos. As palavras por vezes indecifráveis, carentes de tradução — quando percebiam minha expressão de incompreensão, Célia e Raquel interpretavam o significado para mim.
Fazia 8 anos que eu não ia ao sertão, ao interior. A última vez tinha sido durante os preparativos para o aniversário de 80 anos de minha avó, Vó Izolda. Eu havia percorrido, em sua companhia, as cidades em que ela havia vivido no interior do Ceará: casas estreitas e compridas em pequenas cidades, e a vastidão da casa-grande e da fazenda Veneza; o pó e os solavancos das pequenas estradas. Percebi que os últimos anos tinham sido de asfalto e cerâmicas. Mesmo o barro vermelho de Brasília surge tímido entre o cimento e os gramados.
Naquele final de tarde, sentado num banco duro de madeira, sem encosto, esgotado de trabalho, eu deveria querer um banho e a minha cama, mas não quis; eu deveria reclamar daquele desvio de caminho e do atraso, mas não reclamei. Eu estava espantado de querer estar ali onde eu estava. Eu, homem da cidade, com vontade de ser bicho do mato. Conheci a horta de Dona Anésia e as árvores frutíferas de seu pomar — comi um tomatinho amarelo sem formato de tomate. Encarei, olho no olho, o boi amarronzado, ferrado no rosto — e senti a dor do ferro incandescente em meu corpo. Pisei o chão cheio de pegadas e caca e bosta e titica de animais de todos os tamanhos — e inalei sem desgosto o cheiro forte de tudo que é vivo.
Voltamos para o banco de madeira, enquanto Dona Anésia preparava um café. "Não bebo café", eu disse. "Quer um leite?", Dona Anésia ofereceu. E eu disse que não, pensando talvez em leites de caixa e de lata. Mas o leite que Dona Anésia me ofertava estava em um balde de alumínio, recém-ordenhado; eu mesmo vira um vizinho de Dona Anésia depositá-lo à mesa e recusar o pagamento do serviço. Eu fora lá conferir o leite, e ele ainda espumava, apetitoso. Mas eu não lembrei disso quando Dona Anésia me ofereceu leite, e fiquei apenas com o pão de queijo, que parecia também ter terra como ingrediente. "Tu és pó, e ao pó voltarás". Foi assim que me senti: em instâncias de morte. Algo em mim morreu na cozinha simples da roça de Dona Anésia.
Na despedida, ainda sem pressa de voltar para casa, abracei Dona Anésia como se fosse minha avó, com respeitoso carinho. Completamos a carga do Ratomóvel — já tomado por cenografia, fantasias e violão — com algumas peças de queijo e uma muda de flores pequenas, de cinco pétalas, de um vermelho quase roxo. O ratomóvel foi roendo poeira até chegarmos ao asfalto e pegarmos a direita rumo a Brasília.
Foi como sair de um sonho para entrar em outro. Raquel dirigia o carro e a conversa: aventuras de duas amigas encenando sua peça pelo Brasil. Risadas, mágoas, sucessos e vergonhas na voz firme de Raquel e na fala amena de Célia ao pé do ouvido, do banco de trás para o banco da frente. Tem gente que a gente gosta muito embora veja pouco. Amizades feito sertão, amplas, quase inalcançáveis — espaço que se dá ao tempo. Encontros esparsos.
Cheguei em casa no meio de uma história. Raquel encontrando familiares que não conhecia, descobrindo ingenuamente, no Google, parentes de que nem sabia a existência. Espaço que o tempo deu para que o encontro fosse de amor. Desci do carro sem pressa de ouvir o final, ou o começo, ou os detalhes. Fica para uma outra vez. Espaço dado ao tempo é paciência, é mistério, é fé. É roça de amor no sertão da existência.
Voltávamos da Feira Literária de Unaí, em Minas Gerais, onde havíamos nos apresentado. Aceitei a carona das "ratas", embora minha casa estivesse longe do roteiro original delas. Estava com saudade de prosear com essas duas amigas queridas, tão diferentes e tão complementares. Foi de Célia a ideia de comprar uns queijos na casa da mãe de uma das organizadoras da Feira, na saída da cidade. À frente do Ratomóvel, nos indicava o caminho a neta de Dona Anésia. Quando o carro saiu do asfalto e enveredou por uma estrada de terra, perdi minhas esperanças de retornar logo para casa.
Eu estava cansado, quase exausto. Nos últimos três dias, havia acordado antes do nascer do sol e trabalhado por mais de oito horas, sem tempo para fazer minha caminhada, cuidar de meu primeiro romance, ler e editar os textos da Crônica do Dia, dentre outras coisas miúdas e prazerosas que gosto de fazer no meu dia-a-dia.
Depois de muitas curvas, os carros estacionaram no meio do tempo. Era como se fosse o mar, mas um mar feito de terra. Um mar de tons pastéis, em vez do mar verde-azulado de minha Fortaleza. Desci do ratomóvel e girei 360º, reconhecendo a paisagem feita de estrada, cerca, currais e casa. Lembrei de umas placas penduradas em postes de iluminação da W3, uma avenida de Brasília. Eram sete placas, uma para cada sílaba da frase: "Dê es-pa-ço ao tem-po".
Seguindo a neta, entramos na casa até encontrar a dona na cozinha. Até mesmo Dona Anésia parecia feita de terra. A pele marcada pelo sol e pelo trabalho. As roupas simples. A fala de vento, de árvores, de passarinhos. As palavras por vezes indecifráveis, carentes de tradução — quando percebiam minha expressão de incompreensão, Célia e Raquel interpretavam o significado para mim.
Fazia 8 anos que eu não ia ao sertão, ao interior. A última vez tinha sido durante os preparativos para o aniversário de 80 anos de minha avó, Vó Izolda. Eu havia percorrido, em sua companhia, as cidades em que ela havia vivido no interior do Ceará: casas estreitas e compridas em pequenas cidades, e a vastidão da casa-grande e da fazenda Veneza; o pó e os solavancos das pequenas estradas. Percebi que os últimos anos tinham sido de asfalto e cerâmicas. Mesmo o barro vermelho de Brasília surge tímido entre o cimento e os gramados.
Naquele final de tarde, sentado num banco duro de madeira, sem encosto, esgotado de trabalho, eu deveria querer um banho e a minha cama, mas não quis; eu deveria reclamar daquele desvio de caminho e do atraso, mas não reclamei. Eu estava espantado de querer estar ali onde eu estava. Eu, homem da cidade, com vontade de ser bicho do mato. Conheci a horta de Dona Anésia e as árvores frutíferas de seu pomar — comi um tomatinho amarelo sem formato de tomate. Encarei, olho no olho, o boi amarronzado, ferrado no rosto — e senti a dor do ferro incandescente em meu corpo. Pisei o chão cheio de pegadas e caca e bosta e titica de animais de todos os tamanhos — e inalei sem desgosto o cheiro forte de tudo que é vivo.
Voltamos para o banco de madeira, enquanto Dona Anésia preparava um café. "Não bebo café", eu disse. "Quer um leite?", Dona Anésia ofereceu. E eu disse que não, pensando talvez em leites de caixa e de lata. Mas o leite que Dona Anésia me ofertava estava em um balde de alumínio, recém-ordenhado; eu mesmo vira um vizinho de Dona Anésia depositá-lo à mesa e recusar o pagamento do serviço. Eu fora lá conferir o leite, e ele ainda espumava, apetitoso. Mas eu não lembrei disso quando Dona Anésia me ofereceu leite, e fiquei apenas com o pão de queijo, que parecia também ter terra como ingrediente. "Tu és pó, e ao pó voltarás". Foi assim que me senti: em instâncias de morte. Algo em mim morreu na cozinha simples da roça de Dona Anésia.
Na despedida, ainda sem pressa de voltar para casa, abracei Dona Anésia como se fosse minha avó, com respeitoso carinho. Completamos a carga do Ratomóvel — já tomado por cenografia, fantasias e violão — com algumas peças de queijo e uma muda de flores pequenas, de cinco pétalas, de um vermelho quase roxo. O ratomóvel foi roendo poeira até chegarmos ao asfalto e pegarmos a direita rumo a Brasília.
Foi como sair de um sonho para entrar em outro. Raquel dirigia o carro e a conversa: aventuras de duas amigas encenando sua peça pelo Brasil. Risadas, mágoas, sucessos e vergonhas na voz firme de Raquel e na fala amena de Célia ao pé do ouvido, do banco de trás para o banco da frente. Tem gente que a gente gosta muito embora veja pouco. Amizades feito sertão, amplas, quase inalcançáveis — espaço que se dá ao tempo. Encontros esparsos.
Cheguei em casa no meio de uma história. Raquel encontrando familiares que não conhecia, descobrindo ingenuamente, no Google, parentes de que nem sabia a existência. Espaço que o tempo deu para que o encontro fosse de amor. Desci do carro sem pressa de ouvir o final, ou o começo, ou os detalhes. Fica para uma outra vez. Espaço dado ao tempo é paciência, é mistério, é fé. É roça de amor no sertão da existência.
Comentários
Beijo.