AS VIDAS DE UM HOMEM
>> Eduardo Loureiro Jr.
Só mesmo estando fora de seu perfeito estado mental para afirmar que vida só tem uma. Só mesmo chamando urubu de meu louro e whisky de cachorro para acreditar que uma vida é tudo que nos cabe.
Não, não falo aqui de reencarnação. Não preciso apelar para existências além da memória para afirmar o óbvio: são muitas as vidas de um ser humano.
Também não me refiro à renovação celular completa que faz com que, a cada sete anos, tenhamos um corpo completamente novo, com todas as mitocôndrias ainda crianças brincando de bola no pátio interno das células.
Tampouco falo do sono ou do sexo, essas pequenas mortes que nos deixam o corpo prostrado e, em seguida, revigorado.
Falo de passar dois dias numa cidadezinha pequena e encantadora chamada Pirenópolis, não pensando em outra coisa além de livros. E depois voltar e encarar a caixa de entrada com mais de cem e-mails de trabalho. E o beijo da mulher amada.
Falo de passar quatro dias numa casa cearense à beira-mar sem viver nada além de família, amigos e meditação. E depois retornar ao suposto mundo real. E para o abraço da mulher amada.
Falo de passar uma semana entre ensaios e gravações, no ambiente acusticamente isolado de um estúdio. E depois reouvir buzinas e motores. E a risada da mulher amada.
É dessas vidas que falo. Das pequenas vidas de alguns dias que um homem pode ter. A princípio, parecem descanso, ilhas de férias na rotina da realidade. Mas com o tempo percebe-se que as ilhas é que são a continuidade — de terra — enquanto a água, que parecia tão real, é que tem a matéria dos sonhos. O sonho da mulher amada.
Eu, aqui na metade da minha vida, carrego minhas muitas vidas nas costas como quem leva um mochila azul e verde de cá para lá e de lá para cá. Vidas feitas de letras e notas, inspirações e silêncios, mares e montanhas.
E enquanto vou e venho dessas muitas vidas, enquanto tomo banho quando chego ou antes de sair, enquanto troco de roupa para ficar mais à vontade ou para aparecer socialmente, enquanto o avião, o barco, o carro atravessam o ar, a água, o chão, fico pensando que não deve ter cartório no céu e que não há firma reconhecida de Deus que não seja a alegria de viver. E que o poeta que negava as muitas vidas, ele próprio as vivia — mesmo fingindo não o saber.
Comentários
Ótimo texto, nos traz à memória a realidade que está tão perto e, na maioria das vezes, não vivemos.
Abraço.
Beijo.
Parabéns!
Abraços!