NADA MUITO ROMÂNTICO >> Leonardo Marona
A melhor coisa de se mudar é acabar com as bebidas da casa, esvaziar as garrafas. Ana fazia isso e limpava a testa – um gole largo e uma mão na testa; gole, testa... As coisas começaram a se amontoar no meio do quarto-sala no Leblon. Era bom ver aquilo feito. Era ótimo deitar sobre o colchão sem cama, direto no chão, com aquelas bolotinhas maravilhosas de massagem japonesa espantando as dores das costas como moscas na carne podre.
Dependendo de como você deixa suas coisas, elas viram um monte de entulho. Daí bate uma certa vontade de se derreter por alguma coisa grande e dura. Ana esperava a vida bater na porta, olhando pela varanda, cuspindo no toldo encardido do vizinho, jogando baganas nos pombos que trepavam em cima do toldo. E eles trepavam com toda a classe, quietinhos, um em cima do outro, como duas pantufas de inverno. A vida não bateu na porta, mas alguma coisa o fez.
Toc toc. “Toc toc é o caralho, toca a campainha, porra!” Um roupão cor de vinho semi-aberto só porque era a bicha do andar de cima. Pelo toc toc dava pra saber que tinha saído uma briga com a outra bicha – o homem bicha da relação. A bicha entrou e ligou a tv. Ana queria romantismo, mas ganhou uma bicha olhando pra tv e reclamando de alguma ardência na rodela do cu, “olha aqui, ó...”, e o negócio do romantismo ficaria pra depois, bem depois. Eram três vinhos, dois pela metade e um de um gole só, já meio enferrujado e com uma colherinha no gargalo para sei lá o quê. A bicha era só rodelas de cu assadas e reclamações conjugais... “Ai, o Armando não pára em casa...” E Ana: “Você também não, porra”. E a bicha: “Mas eu só faço isso porque ele faz primeiro”. E Ana: “Se for assim, ninguém come mais ovos no café da manhã”. E a bicha: “?”.
Eram três vinhos, uma Viborowa pré-outubro-de-1917 na ilusão dos corpos e quem sabe algumas latinhas de cerveja. Dava pro gasto. Dava pra fazer o quarto-sala virar de cabeça pra baixo e dava pra dançar de cabeça pra baixo também, ou escorregar no chuveiro e morrer sentado. Mas não era nada muito romântico, uma bicha sentada na tua cama vendo tv, comendo meleca e roendo as unhas do pé. Era uma bicha careta. Nada de mulheres, JAMAIS! Nunca havia cheirado um bacalhau fresco. Nunca havia ficado com badalhoca presa por uma semana entre as unhas. Jamais tinha olhado um cuzinho liso. Poderia confundir uma vagina com um sovaco. Ou poderia confundir uma vagina com um pau encabulado. Esse tipo de bicha é tão perigoso quanto dois poetas recitando Maiakovski trancados contigo num elevador pra quatro pessoas.
Ana procurou se distrair olhando pra frente e não vendo nada além do reflexo dela e da bicha no vidro da janela. Pouco abaixo, a tv rodava e a bicha ia e vinha do banheiro, andando como um caubói em cima do cavalo, mas sem cavalo. A bicha bebia e falava e Ana bebia. Nos canais eram as mesmas porcarias pra ganhar dinheiro rápido. Risadas perecíveis e caras de nojo dão o maior IBOPE. E a maioria das pessoas “pra valer” calcula tudo em números de audiência. 20% no campo afetivo era algo que dava pra se levar adiante numa boa. Abaixo de 15 a corneta começava a apitar. A bicha tava com uns 13 pontos. Ana não conseguia raciocinar assim e continuava trocando os canais. Um pouco de tesão na bicha ela talvez tivesse, mas a humilhação ao pensar neste tesão acabava prevalecendo, e cansava um pouco. Não era nada mau, um cara encorpado, barba grossa, que poderia arranhar tuas costas enquanto te metesse por trás. E o melhor era pensar em tudo isso e poder ficar pelada na frente da bicha e a bicha na frente dela. O Roupão semi-aberto já estava três quartos aberto. Um peito mostrava a sua comissão de frente como algo vermelho-escuro, grosso, de uma polegada e com um furo no meio. Pra bicha era como se fosse o peito de um senhor gordo e safenado. Ana tinha vontade de abrir as pernas e a bicha permitiu que ela fizesse isso com os olhos. A bicha falava tão alto que não dava pra se levar muito a sério. Ana só tinha amigos bichas e amigas fanchonas. Vivia do teatro. O meio teatral mexe demais com a libido das pessoas e quem olha de vez em quando em volta acaba enchendo o saco ou sentido um certo nojo ou sensação de queda do cavalo. Sabe, do tipo Paulo Autran num boquete pro assistente de iluminação antes de entrar numa cena de beijo na boca com a Tônia Carrero, numa adaptação de Samuel Beckett. Você tem que ter os culhões do tamanho de uma bergamota pra se manter intacto. Entrar na onda é para sempre.
Ana não conseguia entender como a bicha falava tanto e tão rápido. E adorava falar das mulheres, mulheres isso, mulheres aquilo, só que ela era como aqueles adolescentes de escolas particulares cheias de mato, filhos de pais ex-bichos-grilo que falam do Dostoievski como se fosse o Zé da esquina. Não valia a pena escutar nem muito menos respeitar alguém que gostava de falar de mulheres, mas não tava a fim de se queimar de vez em quando na caldeira delas. Ficar de castigo antes de cometer o crime, sabe esse negócio?
Tinha um canal de sexo 24 horas pay-per-view. Algo como “Jorrada nas estrelas”. A bicha ficou motivada porque quando você assume que não é uma pessoa classificada como uma pessoa dentro das estatísticas, então você pode despirocar de vez sem grandes problemas. Dr. Sporra lambia uma buceta de cabelos crespíssimos e lábios roxos – uma negra de cabelos alisados até a bunda e olhos com lente de contato azul – e enfiava uma garrafa de champanhe lá dentro. O champanhe estava fechado, dois rapazes com roupas exóticas e apertadas entraram e apresentaram seus documentos, fazendo a bicha lembrar do seu próprio elemento fálico e Ana olhar pro lado sem saber se gostava daquilo ou não. Assistir a um filme de sacanagem com uma bicha careta que nunca havia comido uma mulher na vida, mas adorava falar mal delas, é uma cena engraçada de se imaginar. Ser parte da cena é outro negócio. Pau lá dentro, pau lá fora, e a bicha ficou realmente animada. “Ai, Ana, você se incomoda se eu me tocar um pouquinho? Não, né? Tô tão carente... E, afinal, somos amigas, não somos?... Hein?”. E Ana: “...”.
Um creme de massagem para os pés fez o trabalho na parte masculina da bicha. “Olha o tamanho daquele troço!”, ela dizia pra tv e continuava se massageando como se aquilo tudo fosse uma sessão de terapia em conjunto para ninfomaníacos não-ortodoxos. Ana bebia e sentia um pouco de cócegas lá embaixo. Se roçou um pouco na cama, depois foi pro banheiro e usou o chuveirinho do bidê durante uns cinco minutos. Nada muito romântico, uma bicha velha com um pau de 16 centímetros se roendo pelo Dr. Sporra na tua cama, do teu lado, vendo “Jorrada nas estrelas”, usando o teu creme de massagem para os pés no pau e falando mal das mulheres. O filme acabou e a bicha também acabou e seu telefone celular tocou enquanto ela ia se limpar. “Armando!? Tá, tô subindo... Olha, Ana, já vou, tá? Obrigado pelo ombro amigo.” E Ana: “Ombro amigo...”.
“Tchau.” “Tchau.” “Smack.” “Smack.” Ana abriu, fechou a porta, voltou pra cama, com os dois bicos do peito em chamas e o tédio comendo pelas beiradas. Desenlaçou o roupão, trocou o canal de sexo-pay-per-view por um Cary Grant, que arrasava mais uma loirinha deslumbrada com látex até o cérebro, e então Ana se masturbou, com uma garrafa vazia de vinho, delicadamente, languidamente, sofregamente, pensando em garanhões alados e cus assados. O lado bom de se mudar...
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