QUANDO A GENTE PENSA QUE ENLOUQUECEU >> Eduardo Loureiro Jr.

É horrível escrever sobre qualquer coisa quando todo o seu pensamento, e até mesmo o seu corpo estão se ocupando de uma outra coisa. Não, não é sexo. É frio.

Existem alguns ditados sobre Roma – “Quem tem boca vai a Roma”, “Todos os caminhos levam a Roma” – e até mesmo um trava-línguas – “O Rato roeu a roupa do rei de Roma” –, só não entendo por que esqueceram de comentar que aqui faz um frio de secar a boca, de evitar a caminhada e de tornar qualquer roupa dura demais até para um rato.

Tudo bem, talvez essa não seja a forma mais romântica de lhe dizer que estou em Roma, mas com certeza é a forma mais românica: friamente.

Ultimamente tenho imposto a mim mesmo passar por algumas situações desconfortáveis. Não que eu seja masoquista, eu apenas penso que só obterei o melhor pela via do sofrimento, la Via Crucis – deve haver uma rua com esse nome aqui em Roma. Tá, tudo bem, eu sou masoquista. Mas o frio foi só um efeito colateral, eu estava pensando numa situação desconfortável mais frequente e previsível em minha vida: conviver com pessoas.

Poucas coisas tiram tanto minha energia quanto gente. Pior que pessoas, talvez só doenças. Sim, pode parecer estranho que uma pessoa que não goste de pessoas – ei, eu não disse que não gostava de pessoas, mas tudo bem, é mais ou menos isso mesmo –, mas voltando... pode parecer estranho que eu esteja à frente de um site coletivo há dez anos. Garanto que não há paradoxo nenhum nisso. Se eu tivesse de conviver pessoalmente, cara a cara, com Carla, Claudia, Leonardo, Debora, Ana... esse site não mais existiria e vocês não estariam lendo isso agora.
O problema é que um dia percebi que, se eu sou uma pessoa que não gosta de pessoas, então eu não gosto de mim mesmo. E é muito difícil você não ser amado justo pela pessoa que teria todo interesse em lhe amar. Então resolvi me impor essas situações desconfortáveis, essas convivências com pessoas, com o objetivo de me amar.

Por exemplo, agora. Onde pensam que estou? Num tranquilo quarto de hotel? Não, não, não. Estou num albergue, escrevendo esta crônica enquanto Ignácio, um argentino, assoa o nariz, e Marco, um alemão, toma banho. Ainda tem Deishi, que provavelmente não se escreve assim, um japonês que ainda deve estar batendo perna por Roma. Estamos dividindo um quarto, ou seja, dois beliches, quinze metros quadrados e um banheiro. Isso é tão desafiador para mim quanto é desafiador para um alpinista escalar o Everest. Eu mereceria ter meu rosto nos telejornais, inclusive os italianos, só por essa façanha.

A verdade é que, tirando os naturais, frequentes, inevitáveis e irritantes aspectos de conviver com outras pessoas, normalmente são experiências enriquecedoras e, até mesmo agradáveis, principalmente quando elas já se passaram e acontecem apenas em minha memória. Um peido só fede no presente, um bêbado só incomoda no presente. Peidos e bêbados, para citar apenas dois problemas da convivência humana, perdem seu efeito e sua força no passado.

Não sei por que estou lhe contando isso agora. Talvez porque eu esteja tão longe que nem seus pensamentos ruins sobre a minha pessoa irão me atingir. Cruzar o Atlântico não é fácil, mesmo para pensamentos. Mas creio que o motivo principal de estar escrevendo agora é porque, quando nos desafiamos em demasia, chega o ponto em que pensamos que enlouquecemos. E não existe meio melhor de expressão da loucura do que as palavras muitas e, desculpem o pleonasmo, loucas. Dizer que não se gosta de gente é realmente uma expressão verbal à altura da minha loucura. Depois das palavras muitas – qualquer um de vocês pode constatar isso indo a um hospício – vem o silêncio, o louco silêncio.

Parece que é ele que está se aproximando agora.

Comentários

Carla S.M. disse…
Silêncio e frio. Detesto os dois. Mas, Eduardo, embora você não goste (de pensar que gosta) das pessoas, posso lhe garantir que elas gostam (muito) de você. Mas você não enloqueceu, não. Pessoas sugam energia mesmo. Correção: talvez você tenha enlouquecido por um momento, sim. Mas só momentaneamente, só para dar a César o que é de César: um texto bom de se ler.
Juliêta Barbosa disse…
Eduardo,

Também fujo um pouco da desordem que algumas pessoas provocam em minha vida, mas ainda não estou na fase do Narciso, que acha feio o que não é espelho.
Gosto da solidão e do silêncio, mas o encontro com o outro me leva ao prazer de rasgar o véu da lucidez, por meio do qual eu escondo as minhas carências.
Seu texto me fez refletir...
Anônimo disse…
Junoca,
Pensei o mesmo que Muhamaad:. ...Você (pensa que) não gosta das pessoas, mas as pessoas gostam muito de você! E ficar num albergue, com frio e resfriado, dividindoo banheiro com 3 homens, realmente, é uma experiência inédita :o)
Boas vivências por aí.
Bjs, Tia Monca
r a c h e l disse…
Olhe que assim - apesar do belíssimo texto - eu não te levo pra passear em Petrópolis coisíssima nenhuma, hã?
Brincadeira, querido, sei bem como é isso. Cansa. Gente, cansa.

Beijoca e boa viagem.
Anônimo disse…
Adorei sua crônica, principalmente porque também ando correndo de gente. Tenho gostado mais da minha companhia do que da dos outros. Pensei que fosse uma fase interna, mas lendo você fico concatenando se talvez não seja algo do tempo, como o foi no tempo de Baudelaire e Benjamin, para as quais os ares da modernidade eram insuportáveis. Assim como foi para Drummond e outros “modernistas” mais, aqui no Brasil, que se encasquetaram com o tal anonimato das cidades grandes.

Sei apenas que também ando cansada de gente. Aqui, em Roma ou em Bora-Bora, a natureza me apetece mais.

Somos todos loucos, não?! Loucos em meio a outros loucos, tentando, loucamente, encontrar a sanidade e parecer "normais".

Abraços,
Paula Pimenta disse…
Engraçado, vc escreveu uma coisa que iluminou meu pensamento: "pessoas tiram minha energia". Sou tão assim também! Necessito de ficar sozinha pra reabastecer meu estoque energético e quando tenho que ficar longos períodos fazendo social, acabo ficando triste ou de mau-humor.. Mas eu gosto de pessoas.. algumas pelo menos, as que valem a pena! :)
Anônimo disse…
Eduardo,
pois eu jurava que você adorava gente!? Aliás, ainda juro viu? Acho que o frio é que tá te fazendo meio confuso...
:)
beijos!
Anônimo disse…
Você não gosta de gente, está com horror dessas pessoas dividindo o quarto com você, você gosta do que então? Para que ir para Roma se não para conhecer pessoas, lugares diferentes, a experiência do frio? Para não compartilhar com ninguém? Tomara que Roma lhe torne mais humano, que os italianos despertem sua capacidade de se afetar pelo próximo, que o frio lhe dê um resfriado e que você precise assoar o nariz - gesto demasiadamente humano.
Beijo,
Gente, eu fiquei aqui pensando que, se sentir-se sugado energeticamente por outras pessoas è uma coisa normal, entao nòs tambèm devemos sugar a energia dos outros de quando em vez. :) Ah, estou colocando alguns registros de viagem no blog http://edoardoitalia.blogspot.com/
Grato pelos comentàrios. A viagem està tào corrida que nào estou podendo responder um por um.

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