MENINO ANTIGO [Cristiane Maria Magalhães]

O menino não descia as escadas, ele escorregava pelo corrimão de madeira quando os outros não estavam vendo. Os outros eram sempre as pessoas grandes: a avó, o pai enorme, a mãe e Nhanhá. O pai era tão grande e tinha uma voz tão alta que o menino não chegava perto do pai, não. Será que pé de pai bravo mata menino arteiro? A mãe, com a barriga enorme novamente, vivia sempre cuidando do irmão mais novo ou enfiada na cozinha com Nhanhá. “Menino não pode”, “menino não faz”, “menino não grita”, “menino não corre”, “menino não sobe”. O menino aprendeu a conviver com um monte de “não”. Aprendeu também a criar para si um bocado de “sim”, debaixo e em cima dos abacateiros, na margem e dentro do riacho, fingindo que voava na gangorra do pé de manga, vendo estranhos desenhos de assombrações nas nuvens, pulando com os bezerros no pasto molhado de sereno. E o menino corria só pela casa grande inventando brinquedos e amigos. Seria o mais velho de vários irmãos e irmãs, mas ele ainda não sabia. Como primogênito, herdou toda a repreensão e a inabilidade das pessoas grandes e todo o espaço do mundo para correr e toda a imaginação possível para fantasiar na sozinhez dos lugares vazios e toda a alegria de um menino daquela idade crescendo livre na cidade do interior.

O menino ficou aprisionado na casa grande. Os irmãos vieram, cresceram, cada um seguiu um rumo, os pais mudaram – tornaram-se mais brandos com o tempo, ficaram mais doces com os netos, viraram palhaços para os bisnetos. E o menino não cresceu. O menino corria e descia o corrimão da casa grande sempre escondido, esperando pelo “não” . E se escondia debaixo da cama de Nhanhá com a lata de doces feitos pela avó, com o risinho no canto da boca e o ouvido atento aos passos das pessoas grandes que se vissem diriam o habitual “não”. A avó morreu há muitos, muitos anos, e o menino ainda deitava a cabeça no colo dela nas noites de tempestade e se encolhia feito um gatinho enquanto a velha passava as mãos em seus cabelos cantando cantigas tão antigas que ele nem sabia repetir. E o menino adormecia no colo quente da avó, embalado pelas canções de outras infâncias.

A casa mudou, foi pintada, reformada, construíram anexos, tiraram um quartinho dos fundos, trocaram a varanda de lado. Virou lugar de veraneio para a família. E o menino ainda vivia na casa antiga e só descia as escadas escorregando pelo corrimão, sempre atento, esperando pelo “não” das pessoas grandes que nem existiam mais.

Houve uma época em que o menino congelado no tempo e a casa que continuava a mesma por décadas, viveram histórias que nem existiram. Transformaram-se em cenários e protagonistas de aventuras ambientadas naquele tempo que era só deles. E foram lidos por meninos pequenos e grandes mundo afora.

Muitos anos se passaram quando o menino começou a se ausentar da casa grande. Ele, que nunca tinha saído dali durante quase um século, queria roubar a lata de doces, mas desaparecia antes de chegar à despensa. Tentava alcançar os abacateiros, mas eles ficaram muito altos, muito longe e embaçados. O rosto das pessoas grandes piscava e desaparecia, ele não conseguia mais enxergá-las por inteiro. Como era mesmo o cheiro da mãe? E os desenhos daquele vestido que a avó vestia sempre? Depois de um tempo, o menino passou a aparecer apenas em flashes rápidos, em relâmpagos que não completavam nem uma partida de bolinha de gude. Um dia, como uma bolha de sabão, ele desapareceu e não voltou mais.

Palimpsesto

Comentários

Cris, querida,
Vc sempre com sua sensibilidade, delicadeza, esse jeito doce de contar histórias... Muito bela essa narrativa...
Super beijo.
Bela história, Cristiane! Que bom que deu certo a publicação. :)
Carla S.M. disse…
Cristiane, que história mais doce, sensível e triste.
Joakim disse…
Texto Lindo que desperta Sensações Antigas em quem lê!

Parabéns!
Cristiane disse…
Débora, obrigada pelo carinho de sempre.

Eduardo, deu certo sim ;) que bom!

Carla, na verdade este não é um texto triste. É um texto sobre a memória. E a memória deste "menino antigo" ficou parada naquele tempo mais gostoso, na parte da vida da gente que é como uma fruta madura, com polpa bem vermelha e doce: a infância. O menino cresceu, viveu, mas suas memórias ficaram ali na casa velha e antiga da infância. Nós também fazemos isto o tempo todo, não é? Deixamos nossas lembranças brincarem felizes no primeiro beijo ou na concepção dos filhos. Obrigada pela leitura atenta.

Joakim, obrigada!

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