DUAS RODAS >> Ana Coutinho

Já tinha passado da hora. Eu já era grande demais para precisar das rodinhas traseiras da bicicleta. Então alguém – que não lembro quem – tirou as rodinhas da minha bicicleta e anunciou, para quem quisesse ouvir, que a partir de então eu só andaria de bicicleta se fosse como gente grande – ou ao menos não tão pequena. Eu, boba como sempre, fiquei calada e abandonei a bicicleta. Abandonei porque me sabia fadada ao tombo, ao fracasso, a uma inevitável e dolorosa queda, a qual eu evitaria o quanto fosse possível. Mas o marasmo da infância faz mesmo maravilhas...

Era um dia de sol em São Paulo, quando eu passava horas sem fazer nada no térreo. Estava entregue ao ócio há tempo demais, o que me impulsionou a descer à garagem e buscar a minha bicicleta, sem nem saber bem o que eu iria fazer com ela. Não precisou muito tempo paquerando a minha magrela para que eu resolvesse tentar. Foi num susto, um enorme e longo susto que notei: eu conseguia andar sem as rodinhas. Ainda me lembro da emoção desmedida que tomou conta de mim. Eu mal conseguia controlar a minha respiração, andava em círculos sem parar, encantada com a minha habilidade, como se, de repente, eu estivesse falando fluentemente inglês ou – melhor – como se tivessem me sido dadas enormes asas e eu pudesse, num instante, voar.

Mas eu estava sozinha e qual é a graça de conseguir voar se ninguém pode te ver? Comecei imediatamente a gritar, lá do térreo: “Mããããããããe!” Ela não ouvia. Tentei de novo e de novo, sem sair de cima da bicicleta, sem parar de pedalar em círculos pequenos, como se, parando por alguns segundos, eu pudesse perder o encantamento de saber e, talvez, não conseguisse mais repetir aquele feito incrível. Demorou um pouco para que a minha mãe aparecesse na janela acenando. Eu, imediatamente gritei com uma euforia sem tamanho: “Olha, mããããe! Eu estou andando sem rodinhas, sem rodinhas mããããe!”. Ela deve ter dito qualquer coisa como parabéns, deve ter sorrido e acenado para mim, enquanto eu me esforçava para andar e olhar para cima, equilibrar-me e exibir-me.

A alegria continuou, mesmo quando eu comecei a notar que havia algo estranho. Talvez tenham sido os círculos, talvez o fato de ter ficado olhando pra cima, talvez a conquista inédita e preciosa, mas aconteceu que eu comecei a sentir-me mal. Subi correndo e, muito depressa, comecei a vomitar. Nunca mais na vida vomitei com tanto gosto e alegria. Ainda me lembro da empolgação, mal contendo o riso, enquanto a minha mãe dizia: “Tá vendo, foi ficar rodando, olhando pra cima, isso que dá!” E eu, sorridente, só sabia repetir abaixada no chão frio do banheiro: “Eu consegui, mãe. Eu consegui, você viu? Eu consegui!”

Hoje, tantos anos depois, muitas vezes me sinto como aquela menina quando alcanço uma conquista. É bem verdade que poucas conquistas foram tão importantes quanto essa, mas ainda as pequenas, as conquistas tolas do dia-a-dia, me dão vontade de gritar e anunciar.

Acho mesmo bem provável que passemos a vida toda tentando ter a atenção e o amor que recebemos quando criança. Talvez, independente da nossa idade, todos – absolutamente todos – queremos nos descobrir capazes e vencedores, apenas para poder gritar, com toda a força de seu pulmão: “Olha, mãããããããe, eu consegui!”

Comentários

Juliêta Barbosa disse…
Olha, Annnnnnnnnnnnnnna, o tamanho da emoção que o seu texto causou em mim. Você conseguiuuuuuuuuu! Trouxe para o presente, as minhas saudades esquecidas. Obrigada.
Maria disse…
ô menina linda... lembrei das minhas rodinhas e das rodinhas da Daise e da daniela quando foram "tiradas"...
LINDO!!!
Obrigada pela emoção que sinto.
Ana, fiquei com a sensação de que ainda não consegui dar meu "Olha, mããããããe, eu consegui". :)

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