DO OUTRO LADO DA JANELA >> Carla Dias >>

É verdade que assistir ao show da humanidade alheia também cria vínculo com cenários difíceis de se apreciar. Como a pessoa que faz tantas coisas avessas ao que seria benéfico a ela e aos que o cerca, acreditando completamente que sabe mais do que todos a respeito, portanto é juiz, detentor do poder de resolver as questões fundamentais e que dizem respeito não só a ela, mas a outras pessoas. Nessa hora, tento manter a cabeça no lugar e o coração mais brando. Apesar de todos nós termos nosso momento de puxar para si a capacidade de decidir o que deveria ser uma decisão fundamentada por tantos, dureza é ver uma pessoa tomar para si essa função, sentindo-se mártir, padecendo a incapacidade de delegar definições. E raramente isso não provoca desafetos.
A construção de nós mesmos é lenta e nem sempre nos permite enxergar o destino. Eu, particularmente, acho que ela não tem fim, nem mesmo quando o fim da gente chega. Perpetua-se com nossos espíritos que, creio eu, têm mais o que viver, depois daqui.
Encarei fartas dissonâncias humanas, nesses últimos dias. Eu mesma assumi a autoria de muitas delas. Mas olhei de perto, sabe? Feito criança curiosa, ainda na fase das interrogativas. Nesse tempo, assisti telejornal com displicência de quem se fartou das tragédias. Emudeci diante do sorriso indisposto daquele que bradou - a voz atordoada - a dor imensurável de se perder o direito de comer, beber, trabalhar, viver, estudar, sonhar, amar... Um punhado de verbos fundamentais vetados pela miséria ferina destinada a tantos.
Para abrandar a melancolia crescente, observei o menino correndo pra lá e pra cá lá no parque. Tentei imaginar atrás de que, mas ele me percebeu. Aproximou-se e, antes que eu contasse uma história a mim mesma sobre ele, começou a falar sobre a sua capa de herói, que a mãe comprou na “loja bonita da rua de casa”; que iria salvar o mundo das garras do homem mau “que gosta de machucar gente e bicho e carros de corrida e tem cara de tatu”; que gostava de “sorvete de chocolate, bolo de chocolate, biscoito de chocolate, leite de chocolate”, e que aprenderia a voar, mas só “quando for grande”, porque o pai disse que “homem só pode voar depois que aprende a dirigir carro e tira carta”.
A mãe do menino, que nos observava de longe, aproximou-se e sorriu a certeza de qualquer adulto: é bom quando ainda achamos possível separar o bem do mal, o certo do errado. Quando os heróis sempre aparecem em tempo de acabar com o vilão.
Passei esses dias contemplando pessoas, meu passatempo favorito. Houvesse me empenhado, quem sabe, teria me tornado antropóloga, psicóloga, ou um bem-te-vi morando do outro lado da janela de alguém; olharzinho afinado feito o canto.
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Comentários
prefiro você cronista. Assim podemos todos contemplar suas pessoas.
Eduardo... Observar as pessoas é bom e requer certa cumplicidade com o silêncio. Vai ver não é vergonha que você sente, mas o olhar certo para essa função. Eu acho que você já é um observador de pessoas dos bons. Vai ver falta você acreditar nisso... Sem vergonha : )
Drika... Seus três filhotes são três dos meus seis sobrinhos pelos quais sou apaixonada. Ainda que cresçam a toque de caixa, serão sempre a juventude da inspiração para uma vida mais humana, melhor, repleta de boas novas.