A DEMISSÃO >> Albir José Inácio da Silva

- Amanhã não entro mais por esta porta. Depois de tantos anos! Não, não vou pensar nessas coisas de suicídio. Não é a primeira injustiça nem será a última. Bem que vi os olhares, todos já sabiam e ninguém me disse nada. Isso prova que não existem amigos. Não há solidariedade nem em casa. Vão dizer que já esperavam, que a culpa é minha. Até minha mãe é capaz de falar que me avisou. O cretino do Nildo, se souber, é capaz de achar que eu não sirvo mesmo pra nada. E a Zuleica? Se falar alguma coisa, desmancho na hora. Capaz de ainda dizer que estava comigo por pena. Oh cambada! Eu devia ter saído antes. Aprendido a fazer outra coisa. Foram anos de dedicação, vestindo a camisa. Já era de se esperar: quem trabalha direito não tem valor. Vê se algum puxa-saco vai pra rua. Precisava era ganhar na loteria. Aí eles iam ver. Todos eles!

As palavras saíram assim, sem oxigênio. Depois desencurvou quanto pôde a cervical e disse que ia procurar emprego. Disse que devia ter estudado mais. Tinha gente que estudava. Mas ele às vezes não sabia a lição, não sabia o caminho, não sabia se vestir. Fazia o que podia mas sempre queriam mais. Como se ele não bastasse. Como um devedor. Passou a vida devendo. Sua mãe queria mais, a namorada queria mais, o patrão queria mais. Faltava nele alguma coisa. Os anos passavam e ele quase passava de ano. Quase arranjava um emprego ou arranjava uma quase namorada. Ouviu, animado, que era normal, que estudava, tinha emprego e namorada como todo mundo. Chegou a acreditar que era verdade, mas sempre soube o que ia acontecer. Perdeu emprego, amigos e namorada. A família já não o andava querendo mesmo. Pensando bem, nunca teve muito essas coisas. Ia continuar vivendo, só não sabia exatamente pra quê. Tanto esforço para organizar uma vidinha mais ou menos e agora isso. Vai procurar emprego, mas já sabe o que vão dizer. Sabe como vão tratá-lo. O mercado está ruim até para os muito bons. Não que ele não seja bom. Mas não tem tido sorte. Tem um tipo de gente que se dá melhor. As pessoas acreditam, valorizam. Não sabe se é genético, mas ele está sempre se arrastando. No trabalho e na vida. Talvez seja espiritual – já lhe disseram isto. Precisa descobrir.

Não afasta os pensamentos de autopiedade. Encharcado da humana angústia original, o único consolo é ter pena de si mesmo. Uma pena abrangente, compreensiva, que só ele mesmo poderia se dedicar. Pena do que não foi e do que não pode ser. Pena porque não foi nem pode ir. Duvida que alguém tenha tanta empatia, sabe exatamente do que precisa. Ninguém o justifica melhor. Um sopro quente vai-lhe enchendo a alma e uma dignidade o invade. Achou-se. Que venham os acusadores, ele se compreende e se abençoa.

Comentários

Carla S.M. disse…
Que trágico e que comédia. Uma hora a gente acaba sentindo pena de si mesma, culpando alguém pelo que deixou de ser, pelos sonhos que não arriscou seguir, pela covardia, pela própria acomodação. Que bom que a personagem ao menos se perdoou, não?
r a c h e l disse…
Ah Albir, saudade de te ler!
E se tomarmos sempre como referência a 'externa', acho que quase é o melhor que podemos fazer.

Beijoca,
albir disse…
Muhammad, a gente sempre se perdoa se quer sobreviver.

Beijo, Rachel, saudade é de você!
Anônimo disse…
Albir,
que texto denso, verdade e bem escrito. Ao mesmo tempo um humor leve entre algumas linhas.
E quem é que nunca se sentiu assim?
Tão comum e tão especial ao mesmo tempo...
Adorei.
beijos
Juliêta Barbosa disse…
Albir,

Esse último parágrafo tem força e poder. Valeu por todo o texto. Gostei da atitude! Dizem que só os fracos são fortes... Eu acredito!
albir disse…
Verdade, Ana, quem nunca se sentiu assim? Beijo, querida, obrigado.

Também acredito, Juliêta. Os fracos são fortes mesmo quando ainda não sabem disso.
Bom lè-lo novamente, Albir. Pra mim, desemprego é bènçào, possibilidade de recomeço. Seu texto me fez lembrar do filme Treze Visòes, que tem um personagem que é o homem mais feliz do mundo, e que fica desempregado em determinado momento do filme.

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