SE CADA UM... >> Carla Dias >>

Ah, mudar as coisinhas...

Houve uma época em que eu acreditava que sim, que mesmo embarcando numa jornada solitária, conseguiria mudar o que me agredia o senso de justiça e a eloqüência emocional. Era tão clara minha necessidade de mudar as tais coisas, que às vezes me esquecia do que se tratavam; que envolviam outras pessoas, outras direções.

E como chegar ao mesmo lugar indo para cantos diferentes?

Tenho noções bem apanhadas sobre no que resulta a intolerância. Sabe aquela frase que escapa da boca da gente vez ou outra? “Parece que eu atraio”. Já atraí momentos freneticamente intolerantes para a minha vida. Alguns eu assisti de camarote... Até a cena dois, quando não agüentava e tomava partido do meu afeto, assumindo a coragem de sol em escorpião e chorando mais tarde, aos moldes da lua em câncer.

Mas nunca quis mudar os astros... Os lábios... Os astrolábios.

Outras vezes, eu tive de engolir a seco a intolerância, porque quando desferida na gente, a ela nos faz reagir intolerantemente. E se não queremos nos juntar aos seus súditos, melhor não abrir espaço para a possibilidade, não é mesmo? Apesar de que, humana que sou, não consegui evitar vez ou outra. Dar aquilo que não se deseja receber é de uma crueldade homeopática. Auto-crueldade.

Pensei, de coração, que mudaria o mundo...

Mas foi mudando os móveis de lugar que me dei conta de que o mundo é aquilo que deduzi, depois de ouvir uma raspa de conversa de duas moças que saíam do supermercado, ainda outro dia. Uma delas apertou a jugular do clichê e mandou: “Se cada um fizesse sua parte...”

Às vezes, não, muitas vezes durante um mesmo dia, eu tenho de me valer de frases feitas, de pensamentos prontos, para chegar onde preciso, mesmo quando mudar o rumo da prosa, acentuar suas nuanças, poderia tornar o resultado muito mais satisfatório e, de quebra, nos permitir usar melhor a originalidade. Mas estranho é como originalidade anda démodé... E justo num momento em que o novo é o da vez: mal usou, experimente um novo, um melhor, um mais, mais. Essa efemeridade consumista e que nos consome não me daria frio na espinha se também não estivesse sendo aplicada às pessoas cada vez mais rápidas no gatilho ao definirem quem e como o outro fará parte da sua vida.

Sem café em dia chuvoso e frio? Horas papeando sobre nada e tudo e sobre o quase?

Eu sei que tudo se transforma, inclusive a forma como lidamos com a realidade, mas eu queria por demais mudar essa coisinha... E que fosse simples: as pessoas conquistassem seu espaço na gente, levando o tempo que fosse para nos fazer apaixonar por elas, porque essa jornada é fascinante.

Ela disse: “Se cada um fizesse a sua parte”. Ela saindo do supermercado e eu entrando, já esquecida do que deveria comprar, a frase se repetindo na minha cabeça, até que achei uma companheira para ela:

Se cada um fizesse a sua parte, finalmente conheceríamos o inteiro. Seríamos inteiros. E inteiros, compreenderíamos mistérios, velaríamos segredos, compartilharíamos... Café quente em dia chuvoso e frio... Horas papeando sobre nada e tudo e sobre o quase.

A intolerância do lado de fora.


Imagem: Jim do www.unprofound.com

Comentários

Anônimo disse…
Carla,
Gostei muito!
Quntas vezes já me peguei falando essa frase...
Gostei da frase companheira :)
Abraço,
Monica
Carla Dias disse…
Oi, Mônica... As frases companheiras são ótimas, não? Ainda bem que existem : )
É, Carla...De frases/metades também vamos sendo pessoas/metades. Grande sacada essa sua! :)
Carla, essa crônica foi uma bela maneira de você fazer a sua parte. :)
Carla Dias disse…
Marisa: E não é que vivemos de catar cacos para conhecer a cara do inteiro? E a jornada é sempre sedutora.

Eduardo: Mesmo? Eu gosto de fazer parte ao fazer minha parte : )

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