Sua Imagem, o Orkut e Você >> Claudia Letti


O homem que diz "sou" não é,
porque quem é mesmo é "não sou"

[Canto de Ossanha - Baden Powelll e Vinícius de Moraes]


Uma pessoa que conheço me disse uma vez, que nós não somos o nosso discurso; defendemos teorias, ideologias e até idéias banais com uma certa calorosidade, mas não sabemos exatamente se praticamos, realmente vicenciamos e somos essas idéias e teorias. Mas, gostei da frase e fiquei com ela por um bom tempo na cabeça, cuidadosa das minhas palavras pra não discursar em falso, até que vi e ouvi esta mesma pessoa -- que admiro, diga-se -- esbravejando um texto enquanto suas atitudes eram escandalosamente opostas. Era a criatura, representada pelo texto, desmascarando o seu criador.

Lembro de um comercial de refrigerante feito para a televisão em que um homem atravessava um deserto, suado e cansado e empurrava goela abaixo um saco de batatas fritas. Só depois é que bebia, vitorioso e sofregadamente o tal refrigerante, gelado como devia ser. Criança na época, eu não entendia porque o homem protelava o momento de saciar a sede e, o que era pior, atacava batatas fritas antes de beber. A idéia era provocar a sede até não aguentar mais e, mesmo bem crescidinha, não consigo entender essa provocação ao que não queremos ou sequer podemos suportar, que vai para o lado completamente oposto do nosso desejo final.

Você já deu uma olhada nas comunidades do orkut em que participa? Provoquei alguns amigos para uma brincadeira conjunta de suas comunidades. Concluímos que quando socializamos nossos gostos, eles parecem contar a verdade -- eu gosto de vermelho, de quiche, literatura, perfume de jasmim, adoro sapatos, mpb, miojo. Não gosto de aliche, de acordar cedo, de acampar. As nossas preferências merecem credibilidade porque nossos gostos banais não nos ameaçam. Mas, quando vamos para a seara do "eu sou", melhor ter cautela para não discursar sobre alguém que ainda estamos longe de conhecer.

Foi divertido perceber que alguns dos meus amigos, que estavam em comunidades do tipo: "Lixe-se Quem Me Odeia", "Não Tô Nem Aí Para Sua Inveja", são os que mais se ocupam dos outros na tentativa de serem bem aceitos e morrem de medo da inveja alheia. Um desses amigos cultiva até arruda na sala de casa.

Não resta a menor dúvida de que são títulos divertidos e que nem todas as pessoas que participam desse tipo de comunidade tem esse perfil "dá o tapa, esconde a mão", mas nessa brincadeira com meus amigos percebemos que, na maioria das vezes nos defendemos e adotamos atitudes que querem dizer justamente o contrário do que sentimos. Se não estamos preocupados com o que pensam ou com quem não nos tolera, não estaríamos nos ocupando em mandar recados via comunidades ou através de posturas atravessadas. E nem precisa ser estudante de psicologia pra perceber isso.

O fato é que, mesmo que esse tipo de atitude ou discurso seja a casca grossa da planta tenra, nós nos atrapalhamos e em dado momento acabamos acreditando que a nossa imagem reflete aquilo que somos. Queremos, precisamos desesperadamente do refrigerante gelado de limão, mas atacamos o saco de batatas fritas porque não queremos demonstrar nossa sedenta fragilidade; somos os durões da falsa atitude segura com a boca seca.

A imagem que lançamos via nossos satélites pessoais ou virtuais não é proposital e duvido muito que seja para angariar simpatias. É apenas um alerta de "não me subestime, não se penalize, eu sei de mim". Ou mesmo de dizer "Olha só, eu sou apenas humano, não esqueça disso". Queremos estampar uma imagem, à revelia do que realmente somos porque não gostamos de nos mostrar frágeis ou inseguros ou tristes; podemos ser rejeitados e, para não correr qualquer risco, falamos que somos assim, assados, crus ou cozidos, quando na verdade não temos certeza, sequer, se somos grelhados ou mal passados.

Na era das pílulas azuis, se você não estiver firme sobre seu pescoço, não pode ser feliz. A alegria pode ser vendida na farmácia mas, não nos enganemos, é sintética e só se cura da perda e abraça a alegria quem se dá ao luxo do luto. Nós não sabemos do que somos feitos e é natural que também não tenhamos idéia do tamanho da desidradatação, mas antes de discursar a favor de toda sede saciada, melhor não ceder à tentação de atacar as batatas fritas. Quem nos ama já conhece a nós e nossos discursos e aposto que se diverte com nossos recados truncados. Quem não nos ama, bem... Que se incomode e abra uma comunidade.

Comentários

Carla Dias disse…
Vou abrir uma comunidade no orkut "essa crônica é demais!".

Engraçado que, dia desses, conversava com minhas tias e uma delas disse que estava no orkut e deixou o arroz queimar. Aí eu disse pra ela entrar na comunidade "eu queimei o arroz por causa do orkut".

Sempre que entro no perfil de outra pessoa, vou direto às comunidades. Acho que lá as pessoas bebem refrigerante e comem batatinhas ao mesmo tempo, enquanto procuram o oásis no deserto, assim como nós fazemos na vida: nos atrapalhamos com quem somos, e graças, somos capazes de cultivar transformações. Portanto, ninguém é... Todos podemos nos tornar.
Anônimo disse…
Claudia, olha que lesada que sou, não sabia que você estava escrevendo por aqui! Foi com muita alegria que recebi o e-mail me fazendo redescobrir suas letras. Que bom! Achei ótimo essa crônica, e é tão verdadeira, com isso em mente, muitas RHs antes de contratarem o funcionário dão uma espiadinha no orkut, "dize-me onde andas, que poderei saber mais sobre você" seria a adaptação atual do antigo ditado.

Aproveito que te descobri por aqui para te convidar para a peça que estréia no dia 13 de novembro (para convidados), mas que inicia temporada todas as quintas até fevereiro/09, A Vigilante, Uma Comédia de Peso - tem um texto meu (Querido Diário) que foi utilizado como argumento da peça - tem texto da Rosana Hermann também (do blog Querido Leitor).

No teatro Cândido Mendes, Ipanema, as 21 horas.

Beijos,
Patricia
Anônimo disse…
Clau,

Acho que Bruno&Marone estão meio devagar hoje. Ou é aquela minha velha tendência à dispersão, quem sabe? Fato é que fiquei aqui com cara de paisagem lendo você. Uma frase, dentre todas me conquistou:"A alegria pode ser vendida na farmácia mas, não nos enganemos, é sintética e só se cura da perda e abraça a alegria quem se dá ao luxo do luto."

beijo moça querida,
Juliêta Barbosa disse…
Gostei da sua crônica. Ela é bem pertinente ao momento pelo qual estou passando agora. Tenho um blog, e nele, brinco com as palavras e com a possibilidade de não deixar a descoberto, os meus verdadeiros sentimentos. Pura ilusão! Como você diz: quem nos ama...
Andre disse…
Querida Claudia, boa tarde.

Existem processos que encantam pelo resultado
Existem resultados que encantam pelo processo

Raras são as oportunidades de testemunhar o processo e, suspiro pra dizer de quantos resultados nos escapam o tempo todo.

Esse comentário é a tentativa de ilustrar, já que explicar não dá, a emoção que sinto em ter ouvido alguns comentários durante o texto e o texto em suas conversas.

Obrigado pelo lugar na platéia, o resultado é sempre fora do comum.

Beijo carinhoso

André Luiz
Anônimo disse…
Simplesmente assino em baixo
Eu acho que minhas comunidades refletem bem quem eu sou, ou melhor, algumas de minhas características. Mas certamente, aqueles que estão nas comunidades do tipo "dane-se quem me odeia" são aqueles que se acham tão importantes a ponto de serem odiados. Às vezes (na maioria das vezes) ninguém tá nem aí pro fulando!
Anônimo disse…
Claudia,
De Orkut, confesso, não entendo... Mas entendo de bater um olho em um bom texto e conseguir senti-lo e curtir as palavras. E se tem algo em que acredito, isso é: Um homem não é o que ele diz. É o que faz.
Bjo feliz pelo reencontro,
Raquel (Não entendi a história do apelidou ou anônimo... rs)
Anônimo disse…
Minha flor, que saudade!
Seu texto, como sempre, coloca os pingos nos "is". O centro da coisa toda é discurso versus prática, não é? Há uma corrente da linguística que estuda isso. É possível que teu amigo, o do início do texto, tenha informações a respeito... Parece que essa tal corrente defende a idéia de que os discursos são construções coletivas das quais nos apoderamos, ou seja, é possível que, nos nossos discursos haja muitas vozes envolvidas. O problema é: qual meu lugar de fala, sou coerente com ele, com o ponto de vista que assumo?
Pergunto-me isso todos os dias...
Aceite meu carinho e abraço pro maridão!
Anônimo disse…
Xarazinha,
É impressionante como eu acredito em tudo isso aí, mas só nos outros. Eu não tenho nenhuma comunidade com "eu odeio", e são raras as que dizem "eu sou", mas participo de uma que diz bem assim: "tenho culpa de ter pau grande", essa, acho que é pra fazer propaganda mesmo, nada de falso. rsrsrs Um forte abraço,
Analu Menezes disse…
Grande Letti!
Saudades, guria! :D
Isso das comunas do Orkut é bem por aí.
beijocas!
Anônimo disse…
Adorei te ler de novo, ainda mais com este teor "pesquiseiro". Super legal este texto, querida!

bêjo!
Claudia, entre tantos elogios, vou engrossar a legião dos fãs e dizer que o texto é maravilhoso. Agora dá licença que vou dar uma chegadinha lá no orkut relembrar quais são minhas comunidades. :)
Unknown disse…
Carla, você sempre ludicamente pontual, colocou a frase correta para concluir me texto: ninguém é, todos podemos nos tornar. :) beijo!!

Patrícia, os RH`s não seriam eficientes se ignorassem esta vasta vitrine que é o mundo virtual, realmente. Com um texto seu, a peça "A Vigilante, Uma Comédia de Peso"já é um sucesso! Adorei o título. :) Beijo enorme moça querida, muito bom te ver aqui!

Ana querida, se a frase te conquistou me dou por satisfeitíssima. beijo!!

André, Seu lugar é vip, reservado e intransferível. :) Beijo!
Unknown disse…
Cora, eu sabia que você ia assinar sem pestanejar. Beijo grande, guria querida!

Raquel, voce já entende de Orkut sem saber, pois lá tem uma comunidade que diz mais ou menos isso que você escreveu: Atitudes falam mais do que palavras - ou algo assim.
Como você não fez o cadastro para assinar o comentário, o sistema te coloca como "anônimo". Beijo!

Gabis, meu lindo! É isso, você foi no cerne da questão! Eu também me pergunto todos os dias, mas em muitos me frustro por não conseguir agir de acordo com o que penso - ou acredito. Beijo enorme!

Nalú, a gente precisa abrir uma comunidade "adoro cheiro de chuva". :) Beijo grande!
Unknown disse…
Sil, acho que quem escreve crônica, comoa gente aqui, como você que também escreve muito bem, é uma espécie de espião do cotidiano. Bom te ver por aqui! Beijo grande!

Marisa, espie lá e depois me conte. Eu te conto - e que ninguém nos leia - que quando comecei a pensar nisso, saí de duas comunidades, ehehe. Beijo grande!
Anônimo disse…
"A alegria pode ser vendida na farmácia mas, não nos enganemos, é sintética e só se cura da perda e abraça a alegria quem se dá ao luxo do luto." - frase perfeita.
Li ontem sua crônica, fui lá no orkut pra ver o que as minhas comunidades falam de mim - risos - e acabei não voltando pra comentar.
beijos,

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