DE ATRASOS E ABANDONOS [Debora Bottcher]
A falta de pontualidade é um pecado sem testemunha - já que o atrasado nunca está presente. Ela esperava por ele há mais de um quarto de hora. Sua impaciência gritava em silêncio e ela ouvia os sons irritados do seu interior questionando porque ainda permanecia ali, feito árvore isolada à beira da estrada.
A vida ao redor não fazia sentido. O vai/vem/entra/sai das pessoas a afligia mais: ela buscava em cada rosto que transpassava a porta do pequeno Café, em cada face através dos vidros cinzentos, o sorriso amarelo daquele que não se afinava a horários. Todas as vezes ele chegava pálido, ofegante, rápido. Era impossível entender.
A mente dela concebia uma única explicação: alguém o abandonara na infância. Não era comum que um homem não conseguisse atrelar à sua vida o compasso das horas. Algo grave devia ter acontecido afetando seu subconsciente de maneira que ele tivesse resolvido nunca mais estar nos lugares no tempo exato a dar chances de ser esquecido. Melhor deixar alguém à sua espera do que esperar por alguém que talvez não chegasse...
Isso a incomodava profundamente. Nos últimos dois anos, desde que se apaixonara, vivia andando em círculos ao redor dessa criança que se vestia com a altivez dos que tudo sabem. Dono da verdade, ele proclamava suas crenças derrubando qualquer teoria contrária à idéia que apresentava. Bem complexo...
Era uma relação fadada ao fracasso, ela sabia. Contudo, não conseguia deixá-lo. Era como se precisasse protegê-lo, abrigá-lo, dar-lhe sempre uma nova chance - de novo, outra vez, novamente...
Aquele homem tinha nos olhos uma expressão que ela ainda não decifrara. Eram sombras de dores e mágoas que não conseguia captar: ele parecia a própria encarnação da alegria de modo que não era cabível aquela contradição.
Falava pouco de si. Ela o “conhecera” através do amigo de um amigo de quem ele era amigo. Só isso, por si, já revelava a complicação. Mais tarde ela veio descobrir que ele não tinha amigos: era tudo uma fachada. Ele criara um mundo à parte onde vivia literalmente sozinho.
Foi quando se deparou com essa realidade que ela começou a questionar a que viera na vida dele. Que importância lhe era delegada, qual era o seu lugar e porque ele a mantinha? - de certa forma.
E lá se iam dois longos anos em que isso se perdia entre encontros e desencontros, angústias, madrugadas insones, dias tentando localizá-lo, trinta e dois recados na secretária eletrônica. Tudo para, quando já sentia-se exausta e terrivelmente desesperada, vê-lo à soleira da porta, abatido, barba por fazer, olheiras, explicando entre tímido e brincalhão que viajara às pressas, negócios do outro lado do mundo, celular sem alcance... Uma ilha, ela imaginava. Qualquer lugar entre o deserto do Saara e o oceano Pacífico.
Nessas ocasiões - constantes -, permanecia imóvel por um longo tempo - que na verdade era breve -, e depois lhe segurava o rosto entre as mãos beijando-o mansamente, como se faz para acalentar um garoto travesso, assustado, que quebrou a vidraça.
Já disse alguém que o amor tem razões que a própria razão desconhece e era nisso que pensava enquanto constatava que ele não viria. Onde estaria? Esquecera-se dela...
Foi então que um rapaz gentil, de olhos brilhantes e cabelos desalinhados, aproximou-se de sua mesa olhando-a, que sorriu constrangida. Apressou-se em pegar suas coisas imaginando-o desejoso de sentar-se, convicto de que ela já havia ocupado o lugar por tempo demais inutilmente.
Percebeu o estranho tocando levemente seu braço, dizendo coisas que ela não assimilou imediatamente, dada a confusão que tomou conta do momento. Mas no segundo seguinte devolvia seus pertences à cadeira ao lado e voltava a sentar-se, muito descontraída, quase rindo de alguma brincadeira jovial na voz calma e tranqüila que se dirigia a ela. Logo depois tomavam café beliscando qualquer coisa doce que se oferecia à frente deles, conversando como alegres velhos conhecidos que se reencontram numa tarde fria, casualmente no meio de um shopping lotado.
Ela esqueceu de tudo o mais. E foi sem surpresa que sentiu-se tão confortável que finalmente compreendeu todos os atrasos e abandonos a que fora submetida...
Imagens: Tempo, Flavia e Helena; Head View a Model, John Rawlings; Young Couple Drinking Hot Chocolate, Tim Pannell
Comentários
Ainda mais com essa doçura com a qual você finalizou essa crônica.
Adorei!
beijos querida!
Beijo nos três.
Maria Rita
com palavras tão bem encontradas.
Reverencio a sua criatividade.
com palavras tão bem encontradas.
Reverencio a sua criatividade.
Edson Lamim