A sinceridade inquietante dos bem velhos >> Leonardo Marona

Hoje me senti ridículo porque vi um filme sueco. E mais ridículo ainda porque gostei do filme sueco. Nunca entendi as questões suecas, muito menos as dos filmes suecos. A mim pareciam questões profundas, justamente porque os suecos dispõem de tempo para pensar nelas, até se tornarem patéticas. Tempo é o que me sobra quando sinto que não tenho mais o tempo de que precisei um dia. Por isso, depois do filme, fui ver fotos antigas, um dos mais graves sintomas da solidão: ver fotos antigas e dizer alto os nomes das pessoas e dos lugares que aparecem nas fotos. Engraçado que uma das fotos mostrava uma loirinha linda que me abraçava e me lembro dela, mas não do seu nome. Fiquei triste porque pensei que aproveitamos muito pouco os bons momentos, porque pensamos demais nas condições que eles nos impõem, nos nomes que esqueceremos.

Larguei as fotos e decidi usar o resto da manhã para consertar as solas dos meus sapatos furados. Entulhei uma bolsa de feltro com quatro pares e subi a Rua Senador Vergueiro. Logo no início achei uma lojinha de dez palmos de entrada onde um sujeito tomava um suador para polir um sapato com uma velha máquina muito barulhenta. Os sapatos pareciam novos. Mas ele me disse que não mexia nas solas. Ninguém se mete com as bases de nada, nem dos sapatos, porque o risco de não dar certo é maior. Polimos os lados, damos brilho no bico, mas tudo sempre igual com as bases, quer elas estejam podres ou não. Sejam solas de sapato ou qualquer outra coisa.

Não quis voltar imediatamente para casa, com medo da solidão sueca sentada na poltrona do meu quarto com as fotos antigas no colo, aquele cheiro tão íntimo de memória falha, e tão recente... Decidi parar numa padaria para tomar um chá gelado e comer uns pães de queijo. Descobri hoje que, sempre que me sinto só, faço isso: chá gelado e pão de queijo. Eles me são mais solidários nesses momentos. Foi quando ao meu lado parou um velho.

Não era apenas um velho. Era um velho bem velho. Chamava a atendente de “minha paixão” e é claro que isso não me espantou. Vantagens de ser bem velho. Fiquei espantado, porém, que ela também o chamasse de “minha paixão”, não sendo tão velha assim, e que a mim se dirigisse como a um animal pestilento, com desconfiança e a boca torta. Era como se eu pudesse roubar qualquer coisa. Desvantagens de ser muito novo e despenteado. Pensar nisso me acalmou e me deu uma dose de dignidade, como se fosse de certa forma agradável saber que o mundo pode ser tão pouco compreensível apenas pela aparência das coisas. O que me incomodava mesmo era a simpatia do velho, que parecia estar felicíssimo em estar tão perto da morte – e tão mais longe do que eu.

Sempre gostei dos velhos, mas não dos simpáticos. Esse velho era simpático demais. Acenava a qualquer um que passasse na rua. Subia as calças respirando fundo, como quem diz satisfeito: “que bom estar morrendo antes de vocês todos!”.

Estaria, no entanto, tudo bem, se o velho não tivesse, além de tudo, simpatizado com as minhas ricas feições. Mas sim. Chegou perto de mim com seus cabelos ralos e brancos muito bem penteados para trás, com suas pintas mais escuras cobrindo a testa vasta, com seu cheiro de lavanda. Tudo se misturava àquele ranço de fronha usada que os bem velhos têm.

- Está bom o bolinho? – disse o velho.

Foi e me pegou de surpresa. É sempre nessas horas que sou mais idiota e falo mais.

- Muito bons – eu disse. - Bem quentinhos. Mas o saco é grande demais para apenas cem gramas. Poderia ser menor.

Essa nem o velho esperava. Porque arregalou os olhos como quem pensa: “garotinho simpático”.

- Se você diz que estão bons – ele disse – então eu acredito.

O velho sorriu. Pude ver três dentes.

Sorri de volta, mas não sei sorrir de volta, o que às vezes é confundido com rabugice, quando não passa de inaptidão com as convenções sociais. Então o velho resolveu alfinetar.

- Mas você não almoça? – ele disse.

Era meio-dia e meia.

- Sim, mais tarde - respondi. - Saí agora do trabalho. Faço um lanche agora e depois almoço, por volta das três.

- Hum... E você trabalha aonde?

Tentei olhar para frente, como se não tivesse escutado a pergunta, mas como se estivesse tudo bem quanto a isso. Ele não entendeu.

- Hein? Onde trabalha?

- Em Botafogo.

- E vem até aqui lanchar? Não é muito longe?

- Não acho longe. E de qualquer forma, gosto de caminhar.

Ele sorriu – velho estúpido, por que não vai embora? – como quem diz: “ainda não sou idiota, meu filho”.

- E você trabalha com quê? – insistiu.

- Edição para televisão.

Foi minha vez de sorrir – edição para televisão, por essa você não esperava, hein, velho! – como quem pensa: “eu sei, velho, é uma merda, não posso sorrir como você”.

Dessa vez ele entendeu e retribuiu o sorriso, vitorioso. Adorava sua velhice, enquanto eu me sentia ridículo com minha juventude e meus pães de queijo e meu chá gelado e meus sapatos furados e meu filme sueco sobre questões suecas que não eram minhas, mas estavam dentro de mim. Resolvi cortar de vez aquela conversa.

- Tem lixo aqui? – eu disse à atendente, lhe entregando o copo de papelão.

Ela pegou o copo e por pouco não cuspiu em mim. Sorri. Assim sorrio muito bem, quando me desprezam primeiro. Voltei para o velho outra vez. Que fosse a última!

- Bom – eu disse – preciso ir andando.

Ele me olhou dos pés à cabeça.

– Voltar ao trabalho – eu disse. – Um bom café para o senhor.

- Hum – ele resmungou, já não muito simpático, sorvendo seu café, com a outra mão nos cabelos ralos.

Eu já ia saindo satisfeito, quando lá veio ele mais uma vez:

- Ei! Mas me satisfaça uma curiosidade... Você pode trabalhar de chinelos?

Senti que o velho queria mesmo saber. Por que, eu não sei. Talvez quisesse ser um editor para televisão. Poderia afogar o velho naquela xícara de café. Mas resolvi jogar seu jogo sórdido e sincero.

- Não, estou mentindo – eu disse. - Sou um vagabundo. Acordo tarde, a hora que quiser. E passar bem!

Não esperei mais nada. Voltei a passos largos pela Praia do Flamengo. Mãos nos bolsos, fronte furiosa e baixa, cabelos ao vento, percebi que ainda podem crescer os cabelos e me senti forte como Amadeus Mozart. Passei por Mallarmé, por Baudelaire, por Verlaine, todos dando alma a sólidas estruturas de concreto, até chegar a Netuno, não sei se o planeta, o deus do mar, ou apenas o meu prédio. Enquanto esperava o elevador, andando de um lado para o outro com meus sapatos gastos dentro da bolsa de feltro, o porteiro perguntou:

- Achou a sapataria?

- Sim, mas não consertam as solas.

E o elevador chegou vagarosamente, como num filme sueco.

Comentários

Anônimo disse…
Adorei esta crónica!
Pois é Leonardo, ser velho é um direito adquirido e...a partir daí, pode-se ser terrivelmente sincero, bisbilhoteiro e até um pouco arrogante, aproveitar da melhor maneira o tempo que resta, 'namorar' com a atendente (gosto deste termo)e observar melhor e demoradamente os transeuntes que passam...Lá chegarás!!...com ou sem solas.
Maravilha de texto, Léo. Pelo tempo que durou a leitura, eu estive no Rio de Janeiro.

Eu sempre acho os velhos surpreendentes. E gosto de pensar que um dia serei surpreendente. :)
Mari Monici disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Mari Monici disse…
È...velhos surpreendem...meu vizinho de 80 foi flagrado, com a minha paixão dele, pela esposa ontem mesmo...rs
Senti cada passo e cada furo na sola....fiquei até curiosa por um filme sueco.
leonardo marona disse…
edu, querido... o que foi dito de tão absurdo neste comentário excluído? seja bem-vido, chapa, ao rio de janeiro, onde as loiras oxigenadas lêem Rilke em recitais para três pessoas.

estrela, obrigado pelas boas vibrações. preciso das solas. ainda não as consertei.

mariana, acho que era bergan: "O silêncio". pode alugar que é batata.

obrigado a todos pela leitura. até a próxima.

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