JULIE LONDON >> Leonardo Marona


De tirar sangue, a última vez: uma pena na cueca. Que galinha? Dois dedos de uísque na garrafa. Agressões verbais, seguidas de hematomas no pescoço, intercalados com gritos lancinantes de ódio e paixão.

Ele voltou um mês depois. Estava mais magro, tinha sujado a camisa com gordura na pastelaria chinesa. Viu a pastelaria sendo lavada no fim do expediente. Um cheiro terrível adocicado. Ficou lilás. Correu até a casa dela. O enjôo o teria levado até lá? Fazia muito tempo. O porteiro já não reconhecia, ficou olhando feito índio.

A porta entreaberta. A mesma luz vermelha. A casa escura com exceção de um caleidoscópio feito com papel reciclado, que iluminava uma mariposa minúscula no teto do quarto. O gato na cama emaranhado entre as cobertas. Gato odioso, ele o adorava. Pôs a cabeça de fora e começou a miar mostrando os dentes para a mariposa, que se mantinha indiferente no teto.

De início, aos dois novos estranhos, olhar a mariposa e falar com o gato. Saída mais natural sempre, a constrangedora. Logo depois um dos dois se levantou da cama, o outro sentou na poltrona, depois foi outro desencontro, então finalmente se abraçaram. O abraço dele durou mais que o dela. Mas ela permaneceu em seus braços como um fantoche sem luxo. Depois se largaram.

Ele passou então a bater o pé no chão, não sabia o que estava assobiando. Os dois sempre riram juntos dessa mania que ele tinha de bater com o pé no chão quando não sabia o que fazer. Mas dessa vez sem risada. Ele vinha atrás de perdão, orgulhoso demais para pedir, burro demais para entender que a questão não era de perdão, de pedir. A questão era de perder.

Mas ele precisava dizer qualquer coisa, qualquer assunto que não fosse mais a mariposa no teto. Não disse nada, tirou os sapatos.

Ela então sugeriu que tomassem uma cerveja. Assim, bruscamente, como quando se encontraram pela primeira vez. Fazia meses que ele estava com hipersensibilidade no cólon do intestino, o que significava defecar constantemente. Pensou nisso quando aceitou a cerveja, forjando brilho nos olhos, então respirou fundo:

- O gato cagou aqui – ele disse.

Olhou embaixo da cama:

- Foram três cagalhões.

Voltou sorrindo até a poltrona. Ela simplesmente coçou o nariz e foi até o banheiro. Apanhou um punhado de papel higiênico e recolheu a merda do gato. Uma bosta seca sobrou, grudada na fenda de uma tábua solta, comida pelos cupins. Ele disse:

- Ficou um pedaço aqui.

Ela voltou e apanhou com a mão. Deu a descarga. Ranger de passos sobre o taco rachado. Ela voltou para o quarto com duas latas de cerveja na mão.

Nada foi dito com muita clareza ou firmeza. Ele tentou um pouco de franqueza. Ela falou que não estava preparada. Precisava primeiro secar as lágrimas. Um silêncio imperial estourava-lhe as veias das mãos, apertadas sobre um joelho.

Ele se levantou para trocar as latas de cerveja pensando em reumatismo. Quando voltou, disse a ela que se arrependia talvez do teor, mas não do conteúdo da última discussão. Estavam ambos exaustos. Ela bocejou sem força e foi até a janela ver a lua. Ele, tão enclausurado em si mesmo que sabe deus onde juntou forças para se mexer, enxugou as latas num instante e trouxe de uma vez outras duas. Então ficou concentrado no caleidoscópio, mamando sem parar. Tocava uma música brega dos anos oitenta no rádio:

- Você gosta disso? – ele perguntou de repente, com o pescoço enterrado, mas delicadamente.

- Eu tenho mesmo cara de quem gosta dessa merda – ela disse sem disfarçar o sorriso: um antigo charme.

Dessa vez não funcionou. Eram dois pombos com as asas quebradas. Ela se levantou da cama e foi até a prateleira, onde ficavam os livros e o rádio. Pegou um livro. A rádio saiu de sintonia e começou a chiar.

- Essa porra dessa antena mal colocada – ela disse inexpressivamente. – Esse livro é teu.

Jogou em cima dele. A Gorda do Tiki Bar, do Trevisan.

- Você gostou? – ele perguntou forjando interesse, não era dia para muitas verdades.

- Não é meu tipo de leitura – ela disse escolástica.

- Mas gostou mais do que do outro...

- Muito mais.

...

- Você quer que eu vá embora? – ele perguntou.

- Daqui a pouco, quero sim.

Ele se levantou, levou as mãos à nuca e permaneceu assim, de pé diante das costas da mulher, que olhava pela janela. O insuportável som das folhas aviltadas pelo vento lá fora. A mariposa também os havia abandonado.

A mulher virou meia cabeça. Estava apoiada na janela. Uma nuvem transformou a lua num conto de Edgar Allan Poe.

- Você não quer mais uma cerveja? – ela disse.

- Você não quer que eu vá embora? – ele errou.

- Eu disse que quero, daqui a pouco – ela gostou.

- Um pouco pra mim não é nada pra ti – ele foi...

...até a cozinha e pegou a última lata. Engoliu seco – a testa úmida – e golfou na pia. Encheu os copos e sentou outra vez na poltrona. Tomaram a cerveja em total silêncio. Ela bebia como um bem-te-vi. Ele tomou de talagada e começou a amarrar os sapatos logo em seguida. Demorou mais do que o normal. O contato de um cadarço com o outro a irritava profundamente. Tudo nele de repente havia se tornado mecânico e irritantemente previsível. Ele mesmo sabia disso. Mas não sabia o que dizer sobre isso. Era apenas a verdade. Não havia mais o que se dizer além de: “o tempo anda corrido, muito corrido”.

Então ficaram os dois, ainda por um tempo, procurando pedaços invisíveis no chão do quarto. Depois ele se levantou e foi até o banheiro. Mijou sangue. No quarto ela chorava em silêncio porque no rádio tocava You don’t have to be a baby to cry. O gato havia dormido enrolado nas cobertas com a língua de fora.

- Acho que a gente se vê por aí então – ela disse quando ele apanhou a mochila.

Despediram-se cordialmente na porta, com muita distância e educação. Ela segurava a mão dele quando disse:

- Não me procure mais.

Ele desceu as escadas correndo, sozinho como havia surgido, irritado e palpitante, aliviado. No radio Julie London cantava Nice girls don’t stay for breakfast. Ele assobiou terrivelmente a melodia da música enquanto as lágrimas não vinham. A música terminou e elas não vieram.

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