TÁ LIGADO? >> Albir José Inácio da Silva
Embora não tenha a menor ideia do que
seja isso, Uélito acordou estremunhado. Braço dormente embaixo da cabeça,
barriga doendo e pescoço duro. A mãe já o sacudiu duas vezes enquanto se veste
para trabalhar. Parece que ela está falando há horas na cozinha, no banheiro,
às vezes bem pertinho, no quarto que também é sala.
- Levanta logo, menino, vai pra
escola que tu já faltou ontem e eu acabo perdendo o bolsa-família de novo. Pede
pra diretora te deixar entrar, que eu hoje não posso ir, mas eu vou falar com a
patroa pra ver se dá pra ir amanhã. Toma leite do Juninho que eu peguei ontem
no Posto e tá em cima do fogão, não sai sem comer que tu já tá magro que nem
pau de virar tripa. Toma também água da garrafinha que eu trouxe da igreja pra
te curar dos vício e te livrar daquele processo na Vara da Infância, que ainda
bem que foi só uso mas da próxima vez a mulher já falou que tu vai assinar
artigo 33 de tráfico. Tu precisa tomar rumo na tua vida, se não vai morrer de
tiro que nem teu pai, teu tio e teu irmão.
Não para de falar mais nunca, já está
no beco e ainda se ouve a voz. Ele levanta meio arrastado e pega a camisa da
escola que a mãe deixou na cadeira, não vai pegar água nenhuma pra tomar banho,
não vai tomar leite nenhum que está enjoado, vai sem meia mesmo que não sabe
onde está, tira remela com água da chaleira.
Agora é a irmã que fala, fala não,
grita com Juninho que não deixa botar a roupa pra ir prpa casa da vizinha que
toma conta de crianças. Barulho de tapas e Juninho chora mais alto, nãso quer
ir pra casa de ninguém, que ficar com a mãe que já está atrasada pro emprego de
babá e a patroa tem que sair pra trabalhar. Uélito não gosta que bata no
moleque e grita da janela pra Raquele:
- Quero ver se tu bate assim nos
filho das madame!
Raquele se irrita mais:
- Toma conta da tua vida, ô...
chincheiro!
Uélito sai pelo beco meio cambaleando
que já é mesmo o seu jeito de andar. Tem que dar a volta por cima porque não
pode passar pela “boca”. Depois da escola vai até lá desenrolar aquela parada
de ontem que deu ruim. Levou um bote e perdeu a carga praquele PM nojento que
está de olho nele há tempos. Não gosta de vender, mas, sem dinheiro, pegou dez
pra passar sete e ficar com três. Rodou com tudo, bagulho e dinheiro, e o
polícia ainda queria mais. Por isso ficou injuriado e foi procurar o Birro lá
na contenção porque precisava dar dois pra se acalmar. A erva estava malhada,
devia ser quase tudo bosta de burro. Agora a cabeça dói e as pernas ficam
bambas.
No portão da escola tinha que estar
aquela vaca gorda que não gosta dele:
- Todo dia, né, Uélito? Qual a
mentira de hoje?
- Mentira não, tia, meu sobrinho
acordou com febre e eu tive que ir lá embaixo comprar remédio.
- Quem não te conhece que te compra.
Por mim tu voltava pra casa. A culpa é da diretora que passa a mão na cabeça de
vagabundo.
Na sala a professora até gosta dos alunos,
faz dinâmica, pergunta a profissão dos pais. E tem muito motorista, mecânico e
pedreiro, mas Uélito diz que o pai era bandido e já morreu. E todo mundo ri, e
a professora briga porque não se pode rir da profissão de ninguém. Ela mesma
teve um tio que era bandido antes de se converter na igreja. E a professora quer
saber:
- O que vocês vão ser quando
crescerem?
Na saída Uélito tinha que passar na “boca”,
mas a polícia está lá embaixo. Melhor não ficar na rua. Amanhã vai. O gerente é
marrento, mas foram criados juntos, dá pra desenrolar. O problema é que ele
anda bolado porque está a fim da Raquele e ela fica fazendo doce. Sinistra essa
Raquele, dá de graça pros moleques do surf e faz jogo duro pro cara que podia
fortalecer o irmão dela.
Os fogueteiros avisaram que os homens
estão subindo. Daqui a pouco começam os tiros. A mãe já forrou as cobertas no
chão e todo mundo fica deitado – o que é uma bobagem porque tijolo não segura
bala de fuzil – mas ninguém pode fazer nada mesmo, o jeito é ver televisão com
chiado e chuvisco.
Juninho acorda assustado com os fogos
e Raquele grita porque ele está chorando. Uélito pega o menino antes que ele
apanhe e põe em cima da barriga. Ainda soluça, mas vai se acalmando. Suspira e
suspira. Uélito também suspira, a vida está uma droga e ele está contristado,
embora não tenha a menor ideia do que seja isso.
Este texto faz parte do PROJETO CRÔNICA DE UM ONTEM e foi
publicado originalmente em 24/02/2014.
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