poemas de gaveta >>>> branco
prólogo
ele chegou em frente a casa
- estava cansado -
uma noite no velório
e o sepultamento ao entardecer deste dia
pegou a chave
abriu a porta
sentiu o cheiro de tinta fresca
das paredes recém-pintadas
móveis limpos e brilhando
e uma estante onde tinha um baleiro antigo
pensou em quanto conseguiria
pelo imóvel - pelos móveis -
ele estava olhando para a sua herança
I
andando pela casa
percebeu que os cds haviam desaparecido
os livros não
esses estavam em outra estante
no escritório
- onde ele estava agora -
olhou para a escrivaninha
uma relíquia - pensou ele -
e agora ele tinha a chave
a chave daquela gaveta
que jamais fora aberta na presença de alguém
e com certo ar cerimonioso
colocou a chave na fechadura
e a girou
II
com a gaveta aberta
pode ver canetas e lapiseiras
- borrachas também -
algumas balas de hortelã e uma de morango
jogadas por cima de livros de atas de reunião
- 5 ao todo
numerados de 001 a 100 -
todos tinham uma etiqueta onde se lia
poemas de gaveta
III
então era isso
-pensou -
aquele irresponsável piadista bem humorado
achava-se um poeta
abriu a primeira página do primeiro livro
leu rapidamente 2 ou 3 poemas e aprovou
mas largou o livro e foi até a cozinha
abriu a geladeira em busca de gelo
- notou que não havia cervejas -
foi para a sala
onde um peixe solitário parecia examina-lo
e serviu-se de uma dose generosa de jack daniels
IV
voltou ao escritório
pegou todos os livros e sentou-se na poltrona
sentiu-se confortável
e entre um gole e outro lia
- agora com atenção -
acendeu seu dunhill
estranhando o fato de não ter visto
carteiras de cigarros capri pelos cantos da casa
retomou a leitura e nela mergulhou
V
e neste mergulho conheceu/reconheceu pessoas
- e fatos -
soube que para se ter certeza
é preciso ler 7 vezes
conheceu um louco abandonado e outro
chamado cafajeste
soube da morte de uma mulher
- de raro sorriso -
e de como soube enfrentar a morte
sem a ajuda de morfina para aliviar a dor
quando o câncer despertou em seu corpo
- descobriu o que em termos médicos
significa borra de café -
e que ela havia morrido numa tarde quente de inverno
conheceu um carpinteiro
que certa vez
construiu uma cruz à beira de um lago
soube que ele tinha olhos azuis
e soube que ele sofrera com a perda
até perceber que a saudade mata
soube de um assassinato
e soube sobre algumas pessoas que haviam morrido
- além da mulher do raro sorriso -
soube que aquele que se achava poeta
apaixonou-se duas vezes
- amores profundos
inesquecíveis -
conheceu um anjo
que sonhava em se casar e ser feliz
sonho simples
- simples demais para se realizar -
soube que esse anjo sofreu
foi maltratado e subjugado
até não acreditar mais no amor
descobriu sobre armas
tristes e enferrujadas
sobre praias e natureza
tardes quentes de verão
visualizou um benteví
- nascido errado
destinado a ser o único
a nascer e morrer solitário
dentro de si mesmo -
soube sobre luz e sombras
e como um sábado pode ser um dia especial
conheceu uma princesa
que foi criada entre brigas e violência
soube que essa princesa causava dor
- para aquele que se achava poeta -
pois não poderia mais vê-la
soube sobre velhos e meninos
e de um jovem com quatro estrelas no peito
e de uma irmã que carinhosamente
entregava-se em cuidar
conheceu a bruxa que sonhava
e de como ela ensinava a sonhar
soube sobre sonhos feitos
e sobre sonhos desfeitos
soube que não existem moinhos de vento
e que a realidade insiste
VI
levantou-se
- após ler muitos poemas -
espreguiçou-se e pensou
um programa de tv certo seria de boa publicidade
- depois -
ele poderia publicar e ganhar um bom dinheiro
ele poderia publicar e ganhar um bom dinheiro
estava escuro e já esfriando
foi até o quintal de piso frio branco
- e na falta da lareira -
acendeu a velha churrasqueira de ferro
e enquanto as chamas começavam a crepitar
voltou novamente ao escritório
abriu aleatoriamente uma página
de um dos livros que ainda não tinha lido
e soube de uma fábrica
- que engolia e vomitava pessoas -
da qual três jovens haviam sido demitidas
e que as lágrimas em seus rostos
não combinavam com as flores nos vestidos
conheceu o dono da fábrica
que sentado na cadeira do seu escritório
invejava secretamente o operário de rosto tranquilo
enquanto pensava em investimentos e
preços de móveis e imóveis
achou-o/se um pobre coitado
mas soube que aquele que se achava um poeta
dera-lhe um papel generoso na vida
e que ele nunca deveria sentir-se tão sozinho
- e mesquinho -
descobriu que aquele que se achava um poeta
estava morto há muito tempo
apenas respirava
contava piadas
e se mostrava irresponsavelmente bem humorado
até a manhã anterior
epilogo
pegou novamente todos os livros
e de passagem pela sala
pegou também a garrafa de uísque
e no quintal sentou-se no chão
ao lado da churrasqueira quente
- não se sentia mais só -
não sentia frio
estava aquecido
pelas lembranças
pela bebida
e pelo fogo
que alimentou durante toda a noite
página após página
ilustração
má noticia (óleo sobre tela)de lúcio garcez
poema originalmente lançado no livro poemas de gaveta
© 2018 do autor
Comentários
Grato por oferecer o que transborda em sua alma!
Ler sua poesia é exercitar o que existe de humano em nós, nestes tempos estranhos!
Elaine Franco
Você é de uma sensibilidade incrível que até me deixou ofegante
Lindo, realmente inspirado. Parece a descrição de uma vida, da sua vida, num passado distante. Lindisimo!
Há momento em que confundimos a arte com o real, o reflexo com o espelho. Onde será que realmente queremos chegar?, quem somos o real ou o fictício?, o real ou a obra de arte?
Este é você.
Parabéns + uma vez, a difícil arte se de expressar nas palavras.
Repito, brilhante!
Alcir
PS. Agradeço o envio dos livros. Maravilha!