DANOU-SE >> Carla Dias >>


Danou-se, meu caro.

Eu pensei que, finalmente, a liberdade de ser estivesse ali, na esquina das nossas buscas. Não se tratava mais de uma estrada a ser percorrida, mas de destino acenando, nos dando boas-vindas.

Estradas a serem percorridas perderam até o quê poético para mim. Veja, percorremos estradas bem longas, até aqui. Ser tem sido o desafio mais complexo que já encaramos. Ser sem medo de sê-lo. Ser com direito a sê-lo.

Talvez, tenhamos nos deslumbrado com perspectivas e perdemos a noção da força daquele que prefere ecoar um outro alguém. Um alguém oco destinado a sobreviver feito reservatório de percepções obsoletas. Porque, se o ser humano tende a evoluir nada mais natural do que seu olhar se apurar, certo? Suas percepções se aprumarem.

Na minha cabeça – e no meu coração, na minha alma, ou sabe-se lá em que lugar do dentro você entende como sensível ao mundo -, o futuro seria o tempo no qual compreenderíamos que somos seres humanos; que nos trataríamos, primeiramente, como pessoas. Que cortejaríamos as diferenças. Que nos despiríamos da necessidade de nos provarmos superiores. Que nos conheceríamos profundamente e, assim, seríamos capazes de nos reconhecermos em mais, muito mais do que nos permitem as regras empoeiradas às quais nos acostumamos a cumprir.

Esse futuro foi ontem e isso não aconteceu.

Talvez, por conta da nossa curiosidade a respeito do tudo e de todos, sejamos mais dedicados ao provocador. Observá-lo tem se mostrado uma forma efetiva de aprender pessoas, obras, mudanças. 

Mas danou-se, meu caro.

Teremos de encarar outras estradas desacreditadas e batalhas vencidas, com vitórias descartadas, apesar de legítimas. E quando traímos a legitimidade, damos muitos passos para trás. O tempo dedicado à evolução é descartado como se tempo nenhum tivesse acontecido. Como se tivesse sido um sonho com a brevidade de décadas. Séculos.

Assim, diminuímos as chances de alcançarmos a nós mesmos.

Eu compreendo sua apreensão. É começar de novo um novamente que tem jeito de círculo vicioso. Gostaríamos de fazer a roda girar, mas que não fosse para nos enganar, dizendo que nos leva a algum lugar, quando, na verdade, nos mantêm prisioneiros de tradições que nada significam, além de correntes.

Eu realmente pensei que seríamos melhores no tempo-hoje. Então, que acordei desacreditada nesse meu pensamento. Senti uma desolação digna de quem se esvaziou daquela esperança sobre a qual falamos ontem. Foram muitas doses de café, livros folheados, roupas lavadas, contemplação de rua, lá da janela. Tentei me distrair de mim, exercendo a rotina. Então, dei-me conta de que, apesar da desolação, danou-se, meu caro, mas vou continuar a buscar um mundo onde caiba o entendimento sobre o significado do que é oferecido e do que é imposto. Da importância de podermos escolher, de termos opções disponíveis, de assumirmos o que não é suscetível à mudança, porque é essência.

Danou-se, meu caro.

Imagem: Midday Sorrow © Angel Planells

Este texto faz parte do projeto Crônica de um ontem e foi publicado originalmente em 13 de setembro de 2017.

carla.dias.com

Comentários

Clara Braga disse…
É crônica de um ontem, mas não poderia ser mais de hoje!
Albir disse…
Clara tem razão. Nada mais atual. Danou-se. Entornou. Tomara que reste a vontade de recomeçar.
Carla Dias disse…
Clara, obrigada pela visita.
Pois é... a gente vive arrastando o ontem pro hoje, mas nem sempre de um jeito bom.
Beijo!

Albir, essa coisa de danação dá um aperto, né? Mas quem sabe amanhã a gente se encontre num lugar mais justo. Beijo!

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